Minha primeira viagem sozinha foi no susto. Sem planejamento nenhum, com pouco dinheiro, mas cheia de surpresas.
Tudo começou com a minha mãe, que era agente de viagens na era pré-internética, quando não tinha esses blogs de viagem lindos, esses sites, fóruns e tudo mais onde hoje encontramos todo tipo de informação e dicas sobre destinos do mundo todo.
Para vender ela tinha que usar fotos promocionais dos destinos, encartes e informações dadas pelos órgãos de turismo, além de dicas passadas de boca a boca.
Ou podia fazer uma fam tour, uma viagem organizada pelo escritório de turismo do próprio destino para que os agentes conheçam o local, avaliem serviços e hotéis e possam vender com mais conhecimento no assunto.
Foi assim que minha mãe foi convidada para uma fam tour em Cancún, que estava no auge da moda e era o sonho de viagem dos brasileiros com aquele mar azulzinho lindo, resorts e tequilas.
A viagem era no fim de novembro, pré-férias, época de altas vendas na agência em que mamis trabalhava e ela não queria bobear viajando, já que, como sabemos, agente de viagens ganha por comissões. Por isso, perguntou se podia mandar uma das filhas no lugar dela. Deixaram.
Claro que ela estava pensando nas minhas irmãs, que tinham idade mais apropriada para a viagem, mas ambas enroladas em faculdades e empregos também não podiam ir naquela data. Já que eu estava ali sem fazer nada, já com o ano letivo concluído, minha mãe perguntou se eu não queria ir.
Cancún, minha primeira viagem sozinha!
Não esperava e fiquei apavorada, acho que até tremia. No auge dos meus 13 (T-R-E-Z-E) anos, obviamente nunca tinha viajado sozinha, nunca tinha viajado de avião, nunca tinha viajado para fora do país, nem sabia que catso era uma fam tour, mas tinha uma vontade tão, mas tão, mas tão grande de cair nesse mundo grande sem porteira que mantive a coluna ereta, a cabeça erguida e disse: beijinho, beijinho, tchau, tchau, em 15 minutos minha mala está pronta!
Eu sabia que era um presente da minha mãe, já que não podíamos pagar por uma viagem destas e eu não estava preparada para desempenhar o papel dela como agente. Mas ela me deu solenemente um caderno, uma caneta e a obrigação de fazer um relatório completo de tudo, bem profissional.
O bureau de Cancún bancaria as passagens, acomodação em resort com café da manhã, alguns passeios tradicionais com refeições.
Somente os passeios e refeições extras seriam custeadas por cada viajante. Minha mãe raspou o cofrinho, mas meu budget de viagem era tão pequeno que havia um pequeno risco de faltar dinheiro para os jantares. Eu tinha que controlar cada centavo gasto, por isso também tenho poucas fotos dessa viagem. Filme era caro e revelar mais ainda.
Duas agentes que trabalhavam com a minha mãe também foram convidadas e ficaram encarregadas da minha “supervisão”, lembrando que estamos falando de tempos offline em que uma ligação custava uma fortuna. Passei 7 dias em Cancún sem falar nenhuma vez com meus pais, por nenhum meio.
Apesar desse apoio, conheci as duas na véspera e cada uma tinha seus próprios interesses e agendas, então considero mesmo que essa foi minha primeira viagem solo. Era um grupo sim, mas um grupo para outro público e sem ninguém realmente responsável por mim.
O restante do pessoal me recebeu com um choque nada disfarçado, mas também me adotou depois do susto inicial com a minha presença adolescente. Garanti o título de “ótima companhia” graças a minha animação sem fim e meu interesse genuíno por cada coisa.
Veja, de tirar o passaporte ao check in no hotel, tudo era novidade para mim e Cancún tinha sido criada para ser um paraíso, imagine a minha cabeça girando no meio disso tudo!
Sí. No. Gracias. Viva o México! Viajando sem falar outra língua.
Eu não falava absolutamente nada em espanhol. Nessa época nem era uma matéria obrigatória na escola nem eu tinha grana para estudar em escola de línguas. Mesmo meu inglês era bem “the book is on the table”. Não fazia ideia de como me comunicaria, mas já no caminho aprendi uma palavra importante: sí.
Bruna, quer tomar café da manhã continental? Sí. Quer tomar café de novo? Sí. Vamos na piscina? Sí? Vamos na praia? Sí. Vamos comer taco cheio de pimenta na barraca da rua? Sí. Vamos no restaurante que não tem cardápio e não entendemos nada que o garçom diz? Sí. Vamos tirar foto com um camelo (?!)? Sí. Vamos segurar uma iguana na mão? Sí. Vamos tirar foto com chapelão mexicano? Sí. Vamos ver se as pirâmides foram feitos por extraterrestres? Sí. Vamos deitar na grama e tirar foto em forma de pirâmide (?!)? Sí. Vamos tomar marguerita? Sí. Vamos mergulhar? Sí. Vamos fazer aula de salsa? Sí. Sí. Sí. Sí. Sí. Sí. Viva o Mexico!
Tudo e mais um pouco ainda não era suficiente para a minha sede de conhecer aquele novo planeta. Porque não era apenas um país desconhecido, uma cultura, um povo, uma comida.
Eu nunca tinha frequentado aquele tipo de hotel. Não fazia ideia de como me comportar! Ainda bem que sempre fui muito observadora e me adapto rápido. Segui o fluxo.
Meus novos amigos agentes de viagem acabaram contaminados pelo meu estado de maravilhamento, afinal, infinitamente mais viajados que eu, já não tinham esse sentimento de “UAU” por tudo e acabamos formando um grupo super animado e cheio de programas. Eu estava em todos. Nem lembro se dormi nessa viagem.
A fam tour tinha uma programação que incluía uma visita por 6 hotéis que eram vendidos nos pacotes e alguns passeios que também estavam sempre incluídos: Chichen Itza, Cozumel, Xcaret. O grupo ainda negociou outros passeios e visitas e tivemos dias bem cheios.
Anotei tudo detalhadamente para o relatório para a minha mãe, inclusive informações sobre a política local, eleições e outros dados da vida cotidiana que pesquei enquanto batia perna com alguém pelos bairros não turísticos.
Foi a sementinha para esse blog. E tenho orgulho de não ter passado vergonha com meu “trabalho”, que foi até compartilhado com os demais!
Mala e dress code na minha primeira viagem sozinha
Minha malinha na verdade demorou menos de 15 minutos para ficar pronta. Era minha mochila da escola e coube nela todo o meu involuntariamente minimalista guarda-roupa e mais umas 2 blusas que peguei emprestado da minha irmã sem ela saber, só para levar bronca depois.
Eu não fazia ideia do que era dress code e passei a semana toda com shorts velhos e camiseta, indo à praia ou piscina só de biquini e canga amarrada na cintura passeando entre caftans de seda esvoaçantes.
Mas o ápice do meu deslocamento eram as saídas noturnas, que até então nem faziam parte da minha vida.
Num dia, o grupo me chamou para conhecer alguns restaurantes a bares e eu, claro, Sí. A primeira parada foi num bar próximo do hotel onde trabalhava um paquera de uma das agentes, que estava em sua sexta visita à cidade por conta dele.
Até eu com 13 anos via que era só um mexicano metido a galã com cara de safado que seria classificado atualmente como bóe lixo, mas ela ficou por lá mesmo.
Saímos desse bar e fomos conhecer o Hard Rock Café. Os meus novos amigos acharam que eu gostaria de uma camiseta de lá, aquela com o logo enorme no peito, como todos os adolescentes da época.
Eu vivia numa cidade de interior que não tinha nem cinema nem shopping, portanto esse negócio de Hard Rock, Planet Hollywood e etc. tinham pouca ou nenhuma importância. Mas aceitei de coração, afinal a grana estava curta e a única camiseta que eu tinha comprado lá foi numa loja de defeitos com luzes neon para a “caçada” dos itens legais.
Como eu estava de calça bailarina marrom (não sei nem porque vendiam uma coisa dessas), tênis preto e regatinha, escolhi a camiseta preta que achei que ornava mais e já vesti logo por cima.
De lá, decidimos seguir para o Planet Hollywood, que na época também era trendy. Pedi um suco que vinha com um vaso de regallo. Eu não sabia o que era vaso, mas tinha acabado de aprender que regallo era presente, então achei que era uma boa forma de matar a sede e ainda garantir uma lembrancinha para levar para casa.
Saí de lá com um copo enorme na mão, já que apesar da falta de senso estético, eu já era adepta da bolsinha pequena.
Para fechar a noite, a turma já animada pelos coquetéis anteriores resolveu ir à uma danceteria. E me levaram. Na porta negociaram nossa entrada gratuita porque “éramos agentes de viagem e só ficaríamos uns 15 minutos para conhecer”.
Fui seguindo o povo para entrar e o segurança me barrou com um assustador: “tú no!”. Voltam todos meus pais de aluguel para dizer que se responsabilizam por mim e tudo o mais, mas o segurança respondeu, chocado, que eu não podia entrar com aquela camiseta de outro bar e um copo na mão!
O alvoroço se instalou, ninguém sabia o que fazer, até que alguém enfiou o copo na bolsa e perguntou se resolvia eu virar a camista do avesso, afinal, seria uma entrada rápida só para conhecer. O segurança ficou meio contrariado, mas passei para dentro.
Nosso grupo se instalou numa mesa. Eu nem puxei cadeira. Estava deslumbrada com aquelas luzes, aqueles sons, aquela gente linda e avisei que ia até a pista para ver como era e fazer um relatório para minha mãe. Rá-rá.
Muitas horas depois, continuávamos todos dançando macarena como se não houvesse amanhã! Eu lá, entre saltos, paetês e maquiagem com camiseta do avesso, calça cor de bosta, tênis velho e minha combinação de cara cheia de espinhas e descabelo adolescente!
Eu sabia que estava totalmente destoante, mas nada ia me impedir de curtir e continuei com sorrisão na cara na minha primeira balada, mais uma primeira vez para a conta dessa inesquecível semana.
Aprendi muito nessa viagem e quase tudo foi sobre mim mesma. Descobri que realmente aquela vontade de conhecer o mundo e as outras culturas que eu sentia ao ver as revistas e encartes da minha mãe era real oficial e inabalável.
Que me adapto à tudo, respeitando as diferenças, mas sem perder minha essência e personalidade. Que aos poucos ia descobrindo o que gosto numa viagem e deixando o resto pra quem gosta mais que eu.
Descobri que economizar é uma técnica essencial para qualquer viajante. Voltei sem um tostão, mas não passei nenhuma necessidade e ainda deu para comprar uma lembrancinha para cada um da família e um anelzinho de prata do qual ainda cuido como se fosse de diamante.
Percebi que os medos existem para nos proteger, mas também para serem superados. Que para alguns devemos dar atenção e para outros, dar um chega para lá.
Fixei na ideia de que apesar de dress code, de aparências, de coisas materiais, o que importa mesmo é o que somos e o que fazemos. Para onde vamos e como.
Hoje posso até me esforçar um pouco mais para em encaixar, mas se eu estiver a fim, ou se aquilo for a única coisa que tenho, continuo indo de tênis e camiseta do avesso em qualquer lugar.
Voltei extremamente feliz e com a certeza de que não pararia mais. Passei a fazer viagens de fim de semana para a praia com minha barraca e meu saco de dormir, aos 15 anos passei 40 dias desbravando a Bahia com uma amiga, aos 21 consegui fazer minha segunda viagem internacional, dessa vez todinha paga com meu próprio suor.
Quase 30 anos depois, já fui estudar fora (no Canadá, em Angola e em Portugal), já viajei sozinha, com amigas, com amigos, com namorado, com marido, já fiquei mais de um ano num sabático e continuo ai, pela estrada. Gente, eu já fui até o Everest. O Everest! Quem poderia imaginar isso?
Afinal, por quê fiz essa viagem sozinha?
Se você ainda está pensando que tudo isso foi uma grande loucura é porque provavelmente não nasceu nos anos 80, aquela década mágica. Rá-rá. Também não tinha rede social para todo mundo opinar sobre tudo e fazer a gente se sentir mal.
Até hoje não sei como o bureau de turismo autorizou minha ida, mas sei bem como meus pais me deixaram ir. Eles sempre, sempre, me impulsionaram a voar alto, longe, com minhas próprias asas.
Outro dia agradeci meu pai por ter sido um feminista e educado à mim e às minhas irmãs com liberdade e sem aquela bobeira de “minhas princesas precisam ser protegidas do mundo, as virgens intocáveis”. Ele ficou feliz, mas disse que era coisa da minha mãe. Nunca foi só coisa dela.
Mas tive mesmo sorte de ter a mãe que eu tive. Acho que ela mesma não se definiria como feminista, mas de tanto lutar suas próprias batalhas, assim se fez. Assim como a mãe dele se fez e nos ensinou. Inúmeros conselhos da minha vó foram úteis naquela viagem e são até hoje. A maioria deles era sobre aproveitar a vida, se virar sozinha e ficar ligada nos malandros.
Minha mãe tinha a certeza de que deveríamos ser independentes. Para ela era uma questão realmente essencial que soubéssemos que podíamos fazer qualquer coisa sozinhas.
Insistia em dar a real sobre as coisas, em ensinar sobre sexo, sobre assédio, sobre trabalho, sobre a importância de ter seu próprio dinheiro e gastar como quiser, sobre conhecer coisas e lugares diferentes e permitir que isso abrisse nossa mente, sobre não aceitar “nãos” e “você deve” só por sermos mulheres. Tudo isso desde que nascemos e não quando estávamos “na idade” de saber.
Claro que ela tinha uma forma incrível de se comunicar, de ensinar de acordo com nossa condição de aprendizagem, mas de pouco em pouco sempre seguia dando as ideias todas.
Foi assim que tive cedo consciência e discernimento para fazer inúmeras coisas, inclusive essa viagem sozinha que eu mesma custo em entender a coragem dos meus pais para permitir.
Eles confiavam em mim, no meu senso de responsabilidade, nos meus instintos, na minha leitura das pessoas e em tudo o que tinha me ensinado sobre como me defender e me proteger, além, claro, de terem a certeza de que eu ia aproveitar até a última gota!
Uma liberdade que poucos são capazes de dar aos outros, ainda mais às filhas.
Conto hoje, nesse dia das mulheres, para que sirva de inspiração. Não apenas para te dizer que as mulheres podem e devem viajar, sozinhas ou com quem quiserem, acho que já tem bastante gente falando disso e com muito mais propriedade que eu, como minhas amigas do Mariana Viaja e do Ta indo pra Onde?.
Mas pense além. Seja você homem ou mulher. Pense se você respeita as outras mulheres que viajam, que conquistam o mundo ou qualquer espaço, ou se no fundo você fica julgando e ditando o que se deve ou não fazer. Você não estava até agora pensando ai como meus pais deixaram eu ir sozinha pro México com 13 anos?
Pense se você estimula a liberdade ou se prefere sugerir que todos sigam as regras para evitar rupturas doloridas. E também se você se diz liberal, mas no fundo só quer mesmo é ditar regra na vida dos outros, dizer quem tem que ter pêlo e onde só porque é o que você acha bonito, dizer quem deve fazer uma viagem sozinha e quando porque você teria medo, etc, etc.
Pense se você realmente protege suas filhas ensinando onde não devem ir e o que não devem fazer, ou se seria mais útil explicar com honestidade os riscos da vida e como lidar com eles.
Pense na educação dos meninos, não é tão difícil ensinar a ter respeito, a admirar e a estimular que as mulheres tenham seu espaço e vivam como as fazem felizes, ao invés de repetir velhos conceitos das meninas brincam de casinha e meninos de carrinho, como se meninos não vivessem numa casa e meninas não dirigissem.
Pensa aí. Pensa aí e me conta se essa historinha te fez mudar um pouquinho seu modo de ver a vida. Minha mãe não está mais nesse mundo, mas tenho certeza de que ela ficará feliz se você conseguir se libertar um pouquinho. =D
E não esqueça: viaje, mulher. O mundo é seu.
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