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Um Grande Dia – Escritoras Brasileiras Numa Foto Histórica

Neste 12 de junho de 2022 um exército de escritoras compareceu ao Estádio do Pacaembu em São Paulo após convocação no começo da semana feita por Giovana Madalosso.

A Giovana começou o movimento com um post simples, dizendo que viu a foto “Um Grande Dia no Harlem” e pensou que podia ser feito algo assim para registrar o crescimento da literatura escrita por mulheres, que parece estar no momento de maior produção de todos os tempos.

Lembro de ter visto esse post e pensado, meu Deus, SIM, precisamos disso!

Rapidamente a coisa tomou enorme proporção. Natalia Timermam e Paula Carvalho botaram a mão na massa junto com a Giovana e a organização da “Feira do Livro” – evento realizado pela Quatro Cinco Um em São Paulo. Outras autoras começaram a organizar o nosso “grande dia” em várias cidades do Brasil e do exterior.

De repente, a foto das escritoras tinha data, hora e local em várias partes do mundo.

Aqui em São Paulo seria ao lado do Pacaembu na escadaria Patrícia Galvão/Pagu no domingo, 12 de junho, às 11hs. Qualquer mulher que escreva seria bem vinda.

A Um Grande Dia do Harlem é uma das fotos mais clássicas e conhecidas do mundo.

Foi feita numa tarde de 1958 em que o fotógrafo Art Kane foi chamado para fazer um registro numa rua qualquer onde 57 dos maiores jazzistas da época se enfileiraram.

Acho que naquele dia ninguém fazia ideia de quanto talento estava junto.

Um Grande Dia no Harlem. Arquivo Art Kane.

Mas aqui em São Paulo a coisa era outra. Qualquer uma que escreva ou que acompanhe um pouco do universo literário tinha uma ideia de quanto talento nós temos para botar numa foto.

“Nunca tantas mulheres escreveram e publicaram livros no Brasil”, disse Giovana. E ainda tem muitas sem publicar.

A escadaria Pagu era grande, mas ainda assim, minúscula pro tamanho desse talento. A fotógrafa Mariana Vieira foi chamada para fazer o registro e declarou: inviável!

Ela tinha feito as contas e concluído que espremendo muito caberiam no máximo 9 mulheres por degrau, num total de 315. Pouco.

E foi assim que fomos parar dentro do Pacaembu. Um espaço tão masculino, que viu tantas batalhas e conquistas futebolísticas, virou o palco das mulheres escritoras nesse dia histórico, eletrizante, emocionante.

Não sem luta também, porque esses palcos não se abrem facilmente para nós. Mas não é disso que quero falar.

Quero falar do quanto foi importante para mim estar ali. Assumir que sou escritora em um dos meus muitos “eus”.

Eu escrevo aqui, eu escrevo em outros espaços da internet e fora dela. Eu, como bem dizia a mensagem das mulheres do coletivo Papel Mulheres “escolho escrever ao invés de enlouquecer”.

Mensagem do coletivo @papel.mulheres

Quantas vezes sentar com um caderninho ou na frente do teclado não foi a faxina mental que eu precisava, a pílula contra a tristeza ou desesperança, o vômito de tanta coisa que tem dentro de mim e que só sai por escrito?

Quantas vezes também não foi carinho, conforto, alegria, ajuda para alguém que ia ler lá do outro lado da minha tela ou do meu papel?

Quantas vezes não me surpreendi com um texto incrível que saiu de mim? Sei que essa frase parece meio arrogante, mas quem um dia ousou escrever qualquer coisa sabe de que sentimento estou falando.

Daquele misto de orgulho e medo, satisfação e incredulidade quando às vezes a gente termina um texto e fala: “porra, isso ta bom mesmo!”.

Como poderia a escrita, a palavra, a letra, ser parte tão grande da minha vida e eu não colocar o peso certo disso tudo na minha existência? “E eu não sou escritora?”, disse Dani Arrais. Somos todas.

A manhã da foto foi de uma imensidão que não cabe na imagem e uma das coisas que mais se ouvia nas conversas era “eu quase não vim”.

Não porque as mulheres tivessem compromissos, ou achassem besteira estar lá, mas porque não se achavam es-cri-to-ras.

Numa foto com mais de 400 mulheres e que representa só um pedacinho minúsculo do verdadeiro universo da literatura feminina, existia um mar de pessoas lutando para se assumirem escritoras.

Mulheres com um ou dois livros publicados se sentiam assim. Mulheres que tem suas palavras espalhadas aos quatro cantos como a Dani Arrais se sentiam assim. Mulheres que “só” publicaram coletivamente se sentiam assim.

E você sabe o que é isso, né? É que sempre nos disseram que não podíamos. É que sempre nos disseram que nossos escritos não eram bons o suficiente. É que sempre nos disseram que mulheres escreviam menos, que escreviam com menos qualidade.

Mas é mentira. É uma mentira muito grande que nós não vamos mais ouvir caladas!

Nós queremos ocupar todos os lugares e não é só isso, também queremos falar sobre tudo. Nossas inquietudes, nossas verdades, nossas revoluções, vai estar tudo escrito e espalhado aos quatro ventos, pode escrever.

É curioso como o Pacaembu acabou sendo um palco tão adequado para esse marco da nossa ocupação. Ele tem aquele ar assim meio de olimpo, e ontem as deusas voltaram para o monte que fica mais próximo do céu.

Apesar das dificuldades para a entrada e do som altíssimo da passagem pro show que aconteceria à noite, era impossível não sentir uma energia meio mística emanando daquela fila enorme de mulheres cruzando a monumental entrada do Pacaembu e se apossando de um espaço que naquele momento parecia tão naturalmente nosso e sem nada capaz de nos repelir.

Talvez porque naquela caminhada, naquela fila em que a gente trocava figurinhas, encontrava antigas amigas, conhecia novas e exibia publicações, só existia uma certeza: será tudo nosso.

Além das dúvidas sobre estar lá que as impostoras tinham tentado colocar na cabeça das escritoras que somos, também se ouvia muito nas conversas “mas eu vim, porque a gente precisava mostrar nosso tamanho”.

Eu também pensei se devia ir, se podia ocupar esse lugar, mas fui porque achava urgente ajudar a mostrar essa força estranha, essa voz tamanha. Eu precisava gritar com todas aquelas mulheres que merecemos destaque, espaço e mais e mais publicações.

Fui em meu nome e no de todas as que não puderam estar lá e de todas as que virão ainda. Fui pelas escritas que já escrevi e pelas que ainda vou escrever.

Que honra. Que alegria. Que dia foi esse 12.06.22!

Eu to ali no cantinho esquerdo do nosso Um Grande Dia!

Foi lindo ver que estavam ali mulheres de todas as idades, de todos os lugares, de todos os estilos. Tinha autora de ficção, de não ficção, de poesia, de prosa, de internet, de tudo.

Mulheres negras e periféricas estavam lá sozinhas e em coletivos, representando, fortalecendo e não deixando ninguém mais negar a importância delas e de Maria Firmino dos Reis, mulher negra e nordestina autora do primeiro romance brasileiro: Úrsula. Já falei tudo sobre Úrsula e Maria Firmino dos Reis nesse post, depois leia porque é imprescindível conhecer essa obra e essa autora maravilhosa da nossa literatura.

Se nem tudo está perfeito e ainda falta muito, mas muito mesmo, para que a literatura deixe de ser tão branca e tão elitista, ver as mulheres negras posando na frente, com a Maria Firmino em foto e mensagem na primeira fileira da foto, foi essencial e necessário. Que elas ocupem muitos mais lugares e se destaquem como nunca.

Merecem.

Que a diversidade tome a literatura feminina. Que sejamos diversas em lugares, cores, temas. Existe uma infinidade de narrativas e todas elas são boas o bastante para vir ao mundo. E como diz o ditado africano que bem lembrou a Ana Lis Soares, autora que tive o prazer de conhecer nesse domingo: “Toda a história do mundo começa com uma mulher”.

Neste domingo o céu estava mais azul para nós mulheres. E o vento bateu forte na direção que queremos.

Preparem-se porque essa onda da literatura escrita por mulheres é muito mais, é uma maré cheia, daquelas que trazem tudo que está lá no fundo do oceano e deixa o mundo meio estarrecido, mas muito, muito melhor.

Leiam mulheres. Mulheres, escrevam. Merecemos.

Foto: Armando Prado reproduzida do Instagram. Um Grande dia no Pacaembu com Escritoras brasileiras num dia mágico.

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