Relatos de Um Gato Viajante – Livro por Hiro Arikawa
Relatos de um Gato Viajante da autora japonesa Hiro Arikawa é um livro bem singelo que tem feito enorme sucesso mundo afora e é uma forma delicada de conhecer um pouco da literatura japonesa. É um livro cheio de particularidades, que nos faz viajar por lindas paisagens do Japão e por isso resolvi escrever umas linhas sobre ele. Vem junto!
Relatos de um Gato Viajante – Hiro Arikawa – Linhas Gerais
Nana é um gato de rua resgatado por Satoru e é o narrador muito perspicaz da história. Acompanhando as viagens que a dupla faz numa van, vamos descobrindo as paisagens japonesas ao mesmo tempo em que passeamos pelo passado de Satoru e vamos entendendo quem é esse personagem e por quê ele precisa se desfazer do gato (vai dizer que você já não estava julgando?!).
Há, por exemplo, a questão do respeito à privacidade, super importante no Japão e que aparece no livro como o respeito ao direito de Satoru de não dizer o que está acontecendo com ele.
Claro que os amigos especulam, imaginam e até perguntam, mas quando ele se recusa a falar, todos respeitam (e assim ajudam também na construção da trama, que se revela aos poucos).
Também aparecem rituais que misturam budismo e xintoísmo super interessantes de conhecermos. Se quiser saber mais, nesse post sobre religiões do Japão falo um pouco sobre o sincretismo e algumas tradições religiosas japonesas.
Eu Sou Um Gato de Natsume Soseki – Uma Inspiração
O Soseki foi muito inovador com relação à língua japonesa ao começar a escrever de uma forma gramatical que facilitava a tradução para o inglês e escreveu esse clássico em 1905 após voltar de um período de intercâmbio em Cambridge.
Me parece que as pessoas fazem uma interpretação um pouco superficial dessa referência. É verdade que a inspiração narrativa é óbvia, mas o texto faz também um espelhamento das ideias de Soseki numa releitura atualizada.
Enquanto em Eu Sou um Gato o tom é de crítica generalizada ao comportamento humano, incluindo a forma como as pessoas se relacionam, desprezam umas às outras e os animais, são preguiçosas, complacentes e duras, especialmente com as mulheres, em Relatos de um Gato Viajante, a autora parece querer mostrar que os humanos podem ser doces, gentis, companheiros, cuidadosos e, principalmente, carinhosos com os animais.
A oposição dos personagens principais das obras (gatos e donos de gatos) é evidente e me parece ir um pouco além da inspiração narrativa. Está um pouco mais para redenção humana.
Hiro Arikawa também faz algumas críticas às estruturas sociais e familiares que ainda hoje são excessivamente arcaicas e exigentes, mas de forma mais delicada.
O núcleo familiar de Kosuke, um dos personagens amigos de Satoru, por exemplo, representa bem essa crítica. O pai se prende à regras e tradições sociais, mas se ressente com isso e reduz a esposa e o filho sempre que pode.
Kosuke não consegue resistir às pressões do pai e, mesmo com rancor, deixa que quase todos os rumos da sua vida sejam determinadas por ele. E há outros pontos em que a forma como a sociedade japonesa se organiza é questionada.
Já o trabalho como uma força imperiosa na vida de muitos japoneses aparece principalmente no papel dos pais de outro amigo, o Yoshimine, mas também no da própria tia do Satoru. O comportamento deles nos causa estranheza, mas esse distanciamento das crianças em prol da dedicação ao trabalho aparece frequentemente em livros japoneses como algo normal.
Mais do que isso, enquanto a forma como as mulheres são referenciadas na obra de Soseki é de uma claríssima inferioridade, num papel exclusivo de mãe e dona de casa, Hiro Arikawa não esconde que ainda hoje essa a mulher japonesa é constantemente reduzida à estas mesmas “funções”, representando nas mulheres da família de Satoru um pouco das dificuldades ainda enfrentadas por elas.
A sensação é de que enquanto Soseki falou de um período de transição do Japão para o moderno, Arikawa fala à Soseki do futuro, onde o Japão é moderno, mas ainda tem raízes profundas nas tradições antigas. Um avesso com o mesmo forro.
E essa inversão vai também para o estilo. O livro de Soseki é longo, cheio de detalhes e acontecimentos cotidianos. Já Hiro Arikawa optou por uma linguagem bem direta, ainda que entremeada de significados ocultos como é comum na literatura japonesa.
Por fim, é curioso que Soseki ficou órfão quando era criança, passou a ser criado pela tia que, por sua vez, o entregou para uma outra família que nunca o acolheu verdadeiramente.
Ele se encontrou nas palavras e construiu uma carreira como um renomado professor universitário, contrariando todas as expectativas. Mesmo com essa vida complicada, deixou como legado seus métodos e livros que inspiram autores japoneses até hoje.
Já no Relatos de um Gato Viajante, vamos acompanhando um menino muito doce e resiliente, que perde os pais ainda criança e é obrigado a trilhar um caminho difícil, numa semelhança com a vida real de Soseki – e de um gato de rua – que não me parece simples coincidência. ;-)
A importância dos nomes e números no Japão e em Relatos de um Gato Viajante de Hiro Arikawa
No Japão, os números são envoltos em diversas superstições ligados aos fonemas similares.
O número 4, por exemplo, tem uma pronúncia parecida com morte e os japoneses o consideram um número de mau agouro e até evitam usá-lo!
Já o 8, nome do primeiro gato do Satoru, é um número auspicioso, pois seus caracteres foram traços que se abrem em ascendência, simbolizando fortuna.
O gato do livro se preocupa se, por conta do gato anterior se chamar 8, ele vai se chamar 9, número cuja pronúncia é similar à de sofrimento. Já pensou?
Mas inspirado no rabo, Satoru o chama de 7. A pronúncia original do 7, porém, é “shichi” (lê-se “shití”), sendo a primeira sílaba também muito similar à “morte”, como o 4.
Por isso os japoneses não falam shichi para não atrair algo ruim e renomearam o 7 como “nana”, o nome que Hiro Arikawa usa em Relatos de um Gato Viajante.
A mais famosa delas é a do Takarabune, o barco da fortuna onde navegam os Shichi-fuku-jin, os 7 deuses da sorte (vocês com certeza já viram a imagem de alguns deles, podem googlar e confirmar).
De qualquer forma, há uma nuance ai que tem muito a ver com a história, que vai justamente nos colocar cara a cara com a dualidade sobre o bom e o mau, o que é sorte, o que é morte, entre outras sutilezas que talvez a gente perca um pouco na tradução, mas que são lindas de observar mais a fundo.
Também existe um famoso provérbio japonês que une o 7 e o 8 e tem muito a ver com a história do Satoru: “nana korobi ya oki – 七転び八起き” que significa “caia 7 vezes, levante-se 8”. Aprendi na ótima página Komorebi da Anna Ligia e imediatamente fiz a ligação com a história!
Um roteiro de viagem pelo Japão
Apesar do Relatos de um Gato Viajante não ser focado no turismo da dupla e a viagem representar mais um ciclo de vida, dá para ter um gostinho do que o Japão nos apresenta. E é uma delícia.
No livro a viagem é de busca de um novo lar para o gato, mas também é uma viagem ao passado, rememorando momentos importantes e fechando questões da vida de Satoru.
Logo na primeira parada, quando ele volta à infância e ao passeio de escola com Kosuke, os dois viajam para uma das cidades mais emblemáticas que fica bem no meio do Japão: Kyoto, a cidade dos mil templos.
E reflete uma das cenas mais comuns dos templos no Japão: a das excursões escolares. Os pequenos vão aos templos conhecer, meditar em grupo (juro!) e também para praticar inglês, quando abordam os estrangeiros e pedem para bater um papinho. Eu adorava esses momentos fofíssimos! Ganhei vários hachis e tsurus de aluninhos diversos.
Apesar da profusão de templos de Kyoto, é citado explicitamente o Kinkaju-ji, o Templo do Pavilhão Dourado, que é lindíssimo e é daqueles lugares que formam muvucas enlouquecidas de japoneses tirando fotos. Mais clichê impossível.
Também são citadas as lojinhas de lembrancinhas e nesse momento a autora faz referência à outro templo super importante do Japão, mas de forma indireta, o Kiyomizudera. É um templo gigantesco, todo construído sem um único prego, somente com encaixes!
Bom, para chegar à este templo, só há um caminho que passa pelo Higashiyama District, um conjunto de ruelas onde SÓ tem lojas. É uma tentação, tem muitas comidinhas, todo tipo de cacareco, quimonos, leques, papéis tradicionais e etc etc etc.
Os japoneses piram demais nessas lojinhas, é impossível que eles passem por lá sem comprar nada! Bom, é impossível para nós também! Rá-Rá. Essa foto aqui é real de lá 👇🏻
E tem sede em Kyoto, com uma lojinha ali perto do templo, a Yojiya, a marca de cosméticos mais conhecida do Japão. Foi fundada em 1904 e é praticamente uma instituição nacional.
A Yojiya tem vários produtos, mas ficou muito famosa pelos lencinhos que Satoru procura para a mãe em Relatos de um Gato Viajante e que servem para tirar a oleosidade da pele. Lembrando que Kyoto é a cidade “oficial” das gueixas, cuja maquiagem deve se manter perfeita o tempo todo.
Depois, com Yoshimine, eles relembram a excursão à Fukuoka. Essa é a quarta maior cidade do Japão, considerada uma das melhores do mundo para se viver e cheia de cerejeiras, museus e templos que atraem muitos visitantes.
Fica bem na pontinha do Japão, no sentido “sul”, próxima da Coréia e China. Só Okinawa e suas famosas praias paradisíacas ficam mais longe.
E essa parte da jornada termina perto do Monte Fuji, a montanha símbolo do Japão que Nana descreve como ninguém. É impossível entendê-lo sem ser ao vivo!
A admiração que o gato sente ao se ver cara a cara com a montanha é perfeita. Igual à sensação de estar lá. Já escrevi sobre o Monte Fuji aqui nesse post e guardo com profundo carinho os dias que passei lá no lago Kawaguchiko, aos pés dele! <3
Aquela montanha enorme, solitária e imponente é de uma magnitude avassaladora. Inclusive eu moraria lá e cataria pêssegos nas inúmeras plantações que surpreendem quem espera um Japão super mega tecnológico e dá de cara com a simplicidade das plantações familiares por todo lado iguaizinhas às do livro.
Apesar do tom mais melancólico da temporada deles em Hokkaido, que vem a seguir, achei que foi interessante a escolha de Hiro Arikawa por concluir ali a narrativa.
Como ela bem descreveu, Hokkaido é uma região de enormes planícies, lagos e também algumas montanhas que atraem os amantes das trilhas e animais.
Uma área bem mais natural, preservada e aberta que nos remete à novos caminhos e que nos faz olhar para a beleza que nos rodeia.
É também uma região bem fria, realmente conhecida como “País das Neves” que inclusive é o nome de outro livro clássico japonês escrito por Yasunari Kawabata, numa outra referência literária do Relatos de um Gato Viajante.
Se você olhar no mapa, vai ver que Hokkaido fica lá em cima, já perto da Rússia, na altura da Sibéria!
É por isso que embora tenha um inverno muito rigoroso, também é o paraíso dos esportes na neve e tem um monte de hotel dos sonhos com muitos onsens, que são deliciosas piscinas de águas termais naturais.
Enfim, Hokkaido é um lugar onde, mesmo sendo difícil sobreviver, há muitas maravilhas para quem se dispõe a buscar a felicidade.
No fim das contas, acho que o livro traz esse recado, para não vivermos apenas no lado ruim das coisas, em remorsos e culpas, em futuros incertos, em planos nunca postos em prática.
Também é linda a forma como a dupla vai se conectando à beleza que existe ao nosso redor e vai criando lembranças inesquecíveis. No fim, não é isso que importa para todos nós, os momentos que passamos juntos e presentes com quem amamos?
Nana diz uma frase que para mim é perfeita e aplicável a todos os seres: “As paisagens que um gato jamais verá são muito maiores do que tudo que ele chega a conhecer.”
A gente nunca vai conhecer tudo, mas como é bom cada lugar novo que a gente conhece, cada lembrança que a gente cria nos caminhos… Todos os nossos trajetos são únicos e incríveis. Que a gente possa ver cada vez mais paisagens – as literárias e as reais também!
Por tudo isso, recomendo a leitura do Relatos de Um Gato Viajante e recomendo mais ainda conhecer outras obras de autoras japonesas como Hiromi Kawakami e o lindo A Valise do Professor, Sayaka Murata e comentadíssimo Querida Kombini ou Tsugumi de Banana Yashimoto, todos desvendando um pouco do Japão para nós!
A Editora Estação Liberdade é quem mais publica traduções do japonês, então o site deles é um ótimo lugar para encontrar outras referências.
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