O Museu do Reggae é uma parada obrigatória essencial numa viagem para São Luis do Maranhão. O reggae em São Luis não é apenas um estilo musical apreciado, mas um verdadeiro movimento social e antropológico. Um estilo de vida. E é ali que você vai conhecer um pouco mais da história do reggae maranhense. Acredite, todo mundo sai dançando reggae no Maranhão e você não vai ser diferente!
Museu do Reggae – Contando a História do Reggae Maranhense
Você sabe por que o reggae é tão importante no Maranhão?
Tem a ver com a musicalidade, com as mensagens do reggae, mas tem muito a ver com a periferia encontrando lugares para curtir que se espalhou e se transformou numa parte da própria identidade da cidade.
O reggae é tão Maranhense que São Luis tem até o Dia do Regueiro, celerado em 5 de setembro! E, claro, tem um Museu do Reggae com curadoria de Ademar Danilo um dos maiores regueiros e estudiosos do tema.
O Museu do Reggae é pequeno e simples, mas representa bem isso tudo que acabei de dizer. Dividido em espaços que homenageiam os primeiros e mais famosos clubes onde a galera se reunia para curtir o reggae lá nos primórdios do movimento, conta como tudo começou, quais são os artistas, LPs e músicas que fizeram história, como, só para citar um exemplo, Célia Sampaio, a “Dama do Reggae”. Também está exposta no museu “A Voz de Ouro Canarinho” para a gente entender do que se tratam as tais radiolas.
A visita é rápida, mas guiada por jovens que nos levam por uma outra viagem em São Luis, por esse universo desconhecido que é a nação regueira maranhense.
Sério, eu até gosto de reggae, mas descobri lá que meus conhecimentos eram parcos e que eu realmente não fazia ideia do que ele representa e de como é vivido no Maranhão.
E saí do Museu do Reggae ainda mais curiosa do que entrei. Afinal, como é que o reggae, um ritmo jamaicano de poucas conexões com o Brasil, se transformou no símbolo do Maranhão?
Existem várias lendas sobre rádios que pegavam as ondas de Kingston (cidade jamaicana) e outras ainda mais malucas, mas a verdade é que ninguém sabe ao certo como ele chegou, apenas que há 50 anos alguém tocou, alguém gostou e assim foi se espalhando pelas festas.
Mas o que me causou enorme curiosidade era “o quê” no reggae tinha atraído aquelas pessoas, já que o reggae se espalhou na periferia, entre uma população que supostamente não falava inglês largamente (e que mesmo que falasse, podia não compreender o inglês jamaicano, cheio de gírias e fonemas próprios como inclusive ocorreu com muitos americanos e ingleses).
Como o reggae tocou aquelas almas a ponto de se transformar na expressão da identidade delas? Aí, rapaz, a coisa fica muito interessante!
Uma resposta simples é que as pessoas foram cativadas pela musicalidade, pelos sons dos instrumentos e até do patois, uma linguagem jamaicana que ressoa nos corações dos afro descendentes de origem jeje do Maranhão. Era comum, inclusive, que as melodias se transformassem em “melôs”, com o aportuguesamento de expressões em inglês por motivos de: somos brasileiros, né? Busque ai a história de “Melô do Carangueijo” ou “Melô do Au Au” que são simplesmente incríveis, puro suco de Brasil.
E já que aportuguesaram uns trechos de música, também criaram várias expressões próprias. E já que tinha seu próprio vocabulário, começaram a dançar juntinho. E já que todo mundo tava gostando de tudo isso, bora dançar juntinho na beira da praia, que é mais gostoso ainda. E pronto: São Luis é a Jamaica Brasileira.
O reggae surge em São Luis na década de 70 e lá pelos anos 80 o reggae já era uma febre na cidade toda. Embora exista muito preconceito pelas origens periféricas e pelo público não branco, invade aos poucos outras esferas da sociedade e se firma como uma importante manifestação cultural local.
Mas mesmo sabendo de tudo isso, eu ainda me pergunto se não tem algo mais que liga o Maranhão à Jamaica. Gosto de pensar que sim, que não é apenas o ritmo e a “onda” que fez o povo se apaixonar.
Se nos aprofundarmos mais em entender de onde surge a cultura rastafari, vamos chegar à uma proposta de releitura da Bíblia, que busca justamente revisar e destacar as referências ao homem negro (Núbios, Etíopes e Egípcios especialmente), que foram apagadas ao longo da história para transformar a história de Jesus em uma história apenas de “brancos”, esquecendo todas as referências africanas de seus livros.
A partir dessa releitura panafricana, o reggae surge como uma expressão musical para refutar essa tentativa de apagamento e hegemonização histórica, para cantar as belezas afrocentradas, denunciar a opressão e criminalização dos povos negros e se transforma numa voz das periferias, um chamado ao resgate do amor próprio e respeito.
Há quem diga que no Maranhão o reggae não tem o a caráter político que teve em outras partes do mundo, até porque em São Luis o gênero preferido é o reggae “romântico”. Mas eu acho é pouco.
Reggae no Maranhão – Uma Nação Com Origens Ancestrais
Por mais que em São Luis o reggae não tenha se apegado a um discurso preponderantemente politizado, não é tão simples chegar à razão. Pode ser por barreiras linguísticas, pode ser porque o reggae foi adotado como um alívio das pressões sociais que já eram enormes, pode ser porque a melodia levou à uma dança mais sensualizada.
Mas ainda assim, a essência do reggae ecoa, com ou sem consciência. Os rastafaris resgataram um profundo orgulho identitário ao colocarem o povo negro em destaque e se oporem à exploração. Seus símbolos se espalharam, como as cores da bandeira etíope – vermelho, verde e amarelo – que foram adotadas por vááários países africanos após suas libertações e que são as cores oficiais do reggae, além da figura do leão, que representa a força e o poder africano.
Ao mesmo tempo que trouxeram essa mensagem de luta anti sistema contra as injustiças, os rastas também trouxeram uma mensagem de paz, de desapego, de vida simples e união, conceitos que além de bonitos, são capazes de cruzar barreiras linguísticas.
Isso tudo veio junto com a música pelos mares, tenho certeza, e reverberou no povo da diáspora africana maranhense, que ressignificou as melodias pelo que sentiam, mesmo que não entendessem plenamente suas letras. A música é muito poderosa!
E se formos mais longe ainda e avaliarmos o fluxo de envio de escravos de determinadas partes da África veremos que há ligações ancestrais entre os povos jamaicano e maranhense (e caribenha e norte americana com Cuba, New Orleans com toque musical como o ska, o rocky steady, o R&B, o blues), o que me faz crer que o fluxo musical que se estabeleceu séculos depois não veio do nada e sim de uma ancestralidade profunda, cujas memórias de laços e afetos se transferem por gerações não importa onde estejam.
Bem, antes que você ache que eu estou viajando, saiba que tem gente seríssima estudando justamente isso tudo que resumi mais ou menos. Se você se interessar, pode mergulhar em mais pesquisas que vai ficar encantando.
Acho que esse depoimento do Sapo, um peixeiro de São Luis e que é a coisa mais linda, dá um pouco dessa dimensão que estou dizendo:
“Começamos a dançar reggae no quintal, num cercado de palha, no Sá Viana, na Praia do Gaspar, radiolas grandes e pequenas, o reggae é uma maravilha. Eu gosto do reggae roots, eletrônico não, não têm essa pegada. Meu lazer é reggae. Peixeiro, aí eu sou aposentado como peixeiro. Sou viúvo, tenho nove netos, seis filhos. Já fui evangélico, passei dois anos na igreja, não agüentei, às vezes eu tava na igreja aí escutava uma batida de reggae não agüentava. No tempo que nós aprendemos a dançar era calça preta, camisa branca, cinturão preto, boina branca, ninguém sabia as cores, aí fomos criando, criando até descobrir uma origem, até que apareceu a original, as cores originais. Os jamaicanos eles faz muita mímica, muita coreografia, quando ele faz assim (abre os braços) pedindo a Deus, abraça-me. O reggae pra mim é uma cultura autônoma, nossa, trazendo muita paz, respeito, integridade, fibra e cultura, o reggae pra mim sempre foi uma cultura, uma cultura. Nós maranhenses já trazemos esse ritmo no corpo, já nascemos com esse ritmo no corpo, dançamos bumba-boi, dançamos tambor-de-crioula, dançamos tambor-de-mina, batemos tambor-de-mina, tudo isso é cultura, trazemos no coração, toca no corpo todo, o reggae toca no corpo todo. Sou regueiro antigo, desde 1970. O reggae levanta a gente assim, o reggae nasceu para o povo. Ele saiu lá da Jamaica, todo mundo coleciona reggae, alemão, japonês coleciona muito reggae, americano também, é muita gente. É nossa música, o reggae é um lamento, é um bom lamento, é uma beleza de lamento, você podes crê. Eles cantam pra uma criança, eles cantam pra uma pedra, pra uma árvore, pra Jah, eles cantam pra Babilônia. (Sapo, São Luis, mar. 2006).”
Esse depoimento está na tese de Maristane de Sousa Rosa que você encontra aqui na PUC e é interessantíssima.
Ele traz um pouco de várias coisas que envolvem o reggae maranhense como o sentimento que “toca o corpo”, a identificação pelos sinais, gestual, pelo tipo físico, pontos que independem da compreensão total das canções para que arrebatem as pessoas.
Também demonstra como o reggae foi adotado como um momento de lazer disponível para uma camada da população que está à margem e que não consegue ultrapassar tetos invisíveis que as mantém lá embaixo, sem direito à estes prazeres. É pra todo mundo, é um abraço, é algo que forma uma verdadeira nação independente de mapas, onde todos os regueiros são “reis”. Eu adoro esse conceito de nação cultural, que transcende distâncias.
É curioso como essa simbologia era compreendida instintivamente, como os maranhenses conseguiam captar pela entonação, postura e coreografia que as músicas eram, por exemplo, sobre violência, apartheid, amor. Não é fantástico pensar como isso é importante para decolonizar, para fortalecimento étnico?
Veja esse outro depoimento da mesma tese da Maristela:
“A primeira vez que fui no reggae conheci Guiu Jamaica, lá pra 1973, 1974. O reggae é um lazer barato. Tem um bar de um babaca, que na hora que a gente chega na porta ele vai dizendo: – Aqui não toca reggae não. Às vezes a gente quer ouvir outra coisa, mas esse babaca faz assim, só porque tem uma cor dessas (verde, vermelho, amarelo). Eles têm raiva porque o reggae não tem nenhuma ligação com os portugueses, com os franceses, como é o bumba meu-boi. (Saci, São Luis, fev. 2006). “
Num país com tamanha desigualdade social, o lazer, a música, a cultura são catalizadores para o pertencimento, a formação de comunidade, o orgulho. Temos que lembrar sempre disso, que nem tudo é uma luta claramente politizada, pois revoluções culturais também são batalhas coletivas.
Não saia da cidade apenas definindo se você gosta ou não de reggae. Tá longe de ser só isso!
Dançando Reggae no Maranhão
Vou fazer um parênteses aqui para contar um causo meu. Na década de 70, quando o reggae começou a ficar conhecido, Fauzi Beydon tinha um famoso programa de rádio em São Luis que foi popularizando o ritmo. Mais tarde ele montou a banda Tribo de Jah, que é ativa até hoje.
Nos idos dos anos 90, na minha primeira viagem sozinha com uma amiga (sobre a qual já contei aqui, aproveita para se inspirar), nós conhecemos o Fauzi numa barraca de praia em Itacaré. Ele já era bem conhecido Brasil afora, mas eu era meio desligadona e não fazia ideia de quem era, até porque não tinha internet e celular né, gente? Era lá pela época da Pangeia isso ai.
Bom, resumindo a história, as poucas pessoas que estavam na praia sentaram juntas para almoçar, inclusive o Fauzi, que se apresentou e foi super simpático. Ele nos deu um CD da Tribo de Jah (o 2000 anos ao vivo), que minha amiga deixou comigo e eu escutei à exaustão depois, abismada em como aqueles meninos que se conheceram na Escola de Cegos do Maranhão conseguiam tocar daquele jeito.
Nos anos seguintes fui à alguns shows deles, a maioria em Ubatuba naquelas noites mágicas que a gente passava no Red Beach (quem viveu, sabe). Nunca procurei o Fauzi nesses shows, obviamente ele não deve ter nem o menor pingo de lembrança que me deu um CD numa tarde em Itacaré e me fez virar fã. Rá-Rá.
Bem, o tempo passou e eu me desliguei um pouco da onda regueira. Não ouvia Tribo de Jah há anos, até pisar em São Luis no fim de 2022. E só então entendi o significado de algumas estrofes e letras que cantei muuuito por ai afora, como essa de “Nação Regueira”:
Ou essa de “Não Basta Ser Rasta”:
“A Tribo roda a Jamaica
E cruza a linha em toda a sua extensão Muitas pedras na bagagem Segue viagem pro Maranhão”É que na época eu não me preocupei muito (nada) em entender as músicas, era só sentir. Porque reggae é isso, uma coisa que te leva, que dá uma sensação boa, que “toca o corpo”. Meio alienadinha, eu sei, mas lembra gente, não era só “dar um google”, era complexo alcançar a informação que hoje acessamos com 2 cliques.
Nunca sequer parei para pensar no significado de “muitas pedras na bagagem“. Vocês tinham que ver minha cara de choque quando entendi!
Um das expressões que aprendi no Museu do Reggae foi “bota o capacete que lá vem pedrada!” que é usada por DJ’s para preparar o público para uma música boa que ele vai tocar em seguida. É que um bom reggae é chamado de “pedrada”, vinda de “pedra preciosa”. E assim, de repente… vi as “pedras” na bagagem vindas da Jamaica pro Maranhão!
Achei um barato e pensei que entender melhor o movimento do reggae maranhense foi uma “pedrada” na minha cabeça. É bom demais conhecer nossa cultura! E foi muito bom mergulhar nessas lembranças de quando éramos xóvens e entender que tudo também fazia sentido em mim, mesmo quando eu não entendia.
Depois de se inteirar sobre as expressões regueiras, feche o dia num Reggae Roots, uma das noites de puro reggae que acontecem em alguns bares.
O mais famoso entre os turistas é o Bar do Nelson, que fica na Av. Litorânea, na praia do Calhau. O Uber que me deixou lá também era músico e me disse que o Bar do Nelson é igual um bar de reggae em SP e que não era a opção mais autêntica.
O que ele queria dizer é que no Bar do Nelson não tem paredão (você vai ter que ir no Museu do Reggae para entender melhor o que são as enormes caixas de som chamados de radiolas), mas que apesar disso as bandas e DJs que tocam lá são excelentes e fazem a fama do bar, que tem 28 anos de história.
Isso pode até afetar a experiência, que não chega a ser aquela dos primeiros clubes de reggae de São Luis, mas acredite, para nós reles mortais que não temos sangue maranhense, a noite ali é uma baita viagem.
As Reggae Roots do bar do Nelson acontecem às quintas e sábados e basta entrar no enorme galpão para mergulhar nas diferenças culturais desse continente chamado Brasil. Tem gente nova, gente velha, salto alto, chinelo, casais, solteiros, São Luis inteira parece caber ali, todo mundo cantando as músicas que a gente nem nunca ouviu na vida e convivendo na maior paz.
Ah, e em 2023 uma garrafa de cerveja custava inacreditáveis dez reais! Claro, os preços mudam, mas fica aqui o registro de que o Bar do Nelson é barato, ainda que esteja numa das localizações mais badaladas de São Luis.
Para quem se hospeda no centro, o Hapeas Copos, na escadaria que vai da Rua do Giz à Rua de Palma, do ladinho da Praça Nauro Machado e da pousada Portas da Amazônia, tem noite do reggae na sexta. Aqui igualmente conte com preços que fazem a gente sorrir. Eles abrem de quarta a domingo com Tambor de Crioula, Samba e outros ritmos variados, mas sempre com um reggae no meio.
Existem outros lugares, lá no museu do reggae tem até uma lista deles, vai de você querer sair explorando ainda mais! E sempre tem shows de Célia Sampaio, CabeSativa, Tribo de Jah, é só dar uma fuçada nas redes sociais deles para saber onde encontrar algo legal para a noite regueira.
Não deixe de conhecer pelo menos um reggaezinho. Para quem tem na cabeça aquela imagem de Bob Marley pulando de uma perna pra outra e chacoalhando os dreads, é um choque ver os casais dançando coladíssimos, num bailado que lembra um forró, mas sem as firulas. Aliás, o reggae maranhense pouco dependeu da figura de Marley e tem vários outros expoentes menos conhecidos da geral.
O choque passa depois de uns 10 minutos, quando a gente fica com uma sensação de calor no coração ao ver que o maranhense conseguiu transformar um ritmo que fala tanto de amor e integração numa dança ao mesmo sensual e de união. Delícia demais!
Tem quem critique o “reggae turístico”, mas eu acho que independentemente do quão autêntico é esse contato que nós que visitamos a cidade temos com o reggae maranhense, é o mínimo que podemos fazer para entender um aspecto tão forte da cultura dessa parte do Brasil.
E ao invés de apenas dar um check nessa “atração turística”, aproveita esse contato para abrir sua cabeça, para pensar (to te ajudando com direções aqui nesse post), para buscar um significado que está mais ao fundo e que vai te levar à outra compreensão bem mais humana do que a redução à um “gosto musical”.
É por essas e por outras que São Luis me conquistou e já me chama para uma terceira visita: tudo lá é cultura, é música, é festa, é gente sorrindo e dançando. Tem como não amar?
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