O Harlem é o chamado “bairro negro” de Manhattan e é um pouco temido graças à fama nascida de filmes e seriados baseados em um período difícil pelo qual a região passou no pós guerra, em que a pobreza e o preconceito levaram a crer que o local era perigoso.
Parece que as coisas não eram muito fáceis mesmo, mas atualmente o bairro passou por uma verdadeira renovação e merece sua visita pelas delícias que esconde.
Uma daquelas maravilhas que só NY oferece está lá, o culto da Abyssinian Baptist Church. É claro que fazer parte disso exige uma dose considerável de bom senso e de capacidade de se colocar no lugar dos outros, o que restringe bastante o número de pessoas habilitadas, mas espero que você seja uma delas e é por isso que vou te contar um pouquinho das minhas aventuras que foram para além da cultura e se transformaram mesmo em algo espiritual (já que não pratico a mesma religião).
A igreja já é conhecida pelas multidões de turistas, mas é levada muito a sério pela comunidade e eles proíbem meeeeesmo a entrada com roupas inapropriadas (saias acima do joelho ou coladas, calças coladas e leggings, decotes, blusas muito justas, pés descobertos, bermudas) e não é raro que pessoas aguardem um tempão na fila e sejam barradas, muitas vezes porque mesmo avisadas de que não poderão entrar insistem em permanecer tentando (remeto ao parágrafo acima)…. Já há espertões que alugam ou vendem roupas “apropriadas” ali na fila, mas pode esperar um preço salgado por algo que você nunca mais vai conseguir usar. Aliás, o figurino de domingo lá é um show a parte!
Além disso, fotos e filmagens são proibidas e você corre o risco de levar uma bela bronca de um legítimo morador do Harlem que provavelmente terá o dobro do seu tamanho se fizer barulho ou bagunça durante o culto, no que, diga-se, eles estão totalmente certos.
O culto é às quartas, 19hs e aos domingos às 11hs. Eles te aguardam mesmo no domingo (já que muita gente tem medo de ir até lá à noite e geralmente a cidade ganha em atrações noturnas). As filas são intermináveis. Quanto antes chegar, maior a chance de entrar, pois os lugares aos visitantes são limitados. Se você tiver uma única oportunidade de fazer esta visita, não chegue depois das 10hs. Se ficar para fora, pessoas de outras igrejas costumam se oferecer para apresentá-las em substituição e pode ser uma boa pedida, pois há várias ali por perto.
Mas a Abyssinian tem tradição. Com mais de 200 anos, foi fundada por afro-americanos libertos e comerciantes da Etiópia que queriam combater o racismo e é a mais antiga de origem africana em New York. O próprio nome da igreja é uma homenagem ao antigo nome da Etiópia: Abyssinia. Por ela já passaram gigantes como Adam Clayton Powell e Adam Clayton Powell Jr, que fizeram história na luta por justiça e igualdade e iniciaram suas carreiras ali.
Atualmente, além de possuir um Reverendo sincero e simpático, que muitas vezes te leva às lágrimas e outras à risadas, o coro e os solistas são sensacionais e todos na igreja são super receptivos. Sendo respeitoso e mostrando interesse genuíno, sua experiência será única.
A igreja fica na rua 138ª, entre a Adam Clayton Powell Blvd e a Lenox Avenue e fica a 2 quarteirões da estação 135 do metrô.
Na primeira vez que estive lá, cheguei por volta das 9h40 e tchan tchan, uns caras imensos e nada a fim de fazer amigos já organizavam a fila e informavam (gritavam seria o termo mais apropriado) que já tinham atingido a lotação máxima e que deveríamos ir embora. Eles também gritavam para quem não estava corretamente vestido que não havia chance de entrar. Como tinha muito maluco sem noção na fila, resolvemos esperar com esperanças de que, barrados na porta, deixariam seus lugares para nós. Quase deu certo, mas faltando 5 pessoinhas na nossa frente bow! porta na cara and go home!
Saímos então desbravando. Ali perto, no 547 da Malcom X Blvd fica um restaurante conhecido chamado Miss Maude’s Spoonbread Too, que é barato e serve comidas à moda sulista, caso queira se aventurar nesse diferente paladar.
O Apollo Theater, onde James Brown e outros gênios começaram a se apresentar fica poucas quadras para baixo, na rua 125ª. Dá perfeitamente para ir caminhando e ainda aproveitar para conhecer a região. Ali pertinho também fica o restaurante Sylvia’s, no 328 da Malcom X, outro famoso das redondezas, mas que só abre para o jantar e ainda é bom fazer reserva!
Como em qualquer outro lugar, é sempre bom estar atento no bairro, mas não há maiores riscos.
Na verdade, dá para ir andando até o Central Park, que começa na 110ª St, mas ai já é necessário um pouco mais de disposição… Se você tiver pique, aproveite, vai ver o pessoal jogando basquete das ruas, vizinhos conversando pelas janelas, rappers que ainda ficarão famosos saindo de carros exóticos e, se se atrever a andar mais pela noite, vai ver turmas de break, muita música, gente cheia de estilo e provavelmente um pessoalzinho mais esquisito.
Também vai ver muita arte nas ruas: outro projeto para levantar o bairro. Há um painel na própria Adam Clayton com 125ª bem bacana e muitos grafites por todos os lados.
O Harlem, como eu disse, vem recebendo investimentos, como o escritório do Bill Clinton que se instalou por ali trazendo com eles restaurantes e outros escritórios. Além disso, para quem não sabe, o Harlem possui uma larga região hispânica onde, a propósito, moram muitos brasileiros e a língua, comida e música que prevalecem é a hispânica, dando ao bairro o simpático nome de “El Barrio”. Fica mais para o leste, a mesma região onde já viveram os famosos Morello e outros ícones da máfia italiana.
Já pro lado oeste, você pode dar um pulo para conhecer a famosa Columbia University e passar por cenários de vários filmes e livros.
Outras jóias do Harlem são os jazzisticos Lenox Lounge e Cottom Club, que embora não seja o original, ainda tem muita história para contar já que fica na “Sugar Hill” que teve um período de ouro nos anos 20 e apresentou muitos artistas que marcaram a música negra.
Se apesar de interessado você ainda preferir andar acompanhado, há empresas especializadas em organizar passeios de ônibus ou a pé mesmo e até levam a algum culto, provavelmente outro e não o da Abyssinian, mas igualmente bonito e tocante. Alguns exemplos são a Harlem Spirituals e a Harlem Heritage Tours. Sinceramente, achei os preços meio altos, mas também acho que é sempre bom receber informações de quem conhece.
Apesar de ter conhecido o bairro e aproveitado um lindo dia, fiquei frustrada por não conhecer o culto e, numa outra visita à cidade, resolvi pesquisar mais e voltar mais cedo.
Dei uma exagerada, eu confesso. Cheguei lá às 6h45, porque entendi mal que havia outro culto às 7hs. Não há, nesse horário há um grupo de cantos, algo restrito. Uma das pessoas que organizam o grupo ficou com pena de nós e nos deixou entrar na igreja para esperar porque estava um frio ridículo e porque fomos muito educadas e prometemos rezar. Uma daquelas coisas que nunca vão se repetir. Cena de filme, um monte de gente cantando como em “Mudança de Hábito” com direito a velhinho passando mal e socorro médico. E como nos comportamos e eu até chorei de preocupação pelo velhinho que nunca tinha visto antes e que passa bem, obrigada, pudemos participar do culto fechado que acontece antes das 11hs e que é bem proibido para turistas. Para completar, era uma data especial e havia um reverendo de outra igreja participando, alguém muito sábio que me levou à mais lágrimas. Também passamos uma certa vergonha quando nos fizeram nos levantar e nos apresentar à comunidade como “as novas frequentadoras”. Mas todo mundo queria nos conhecer e nos abraçar…
Enfim, vá, conheça esse lugar fora do roteiro, veja essas pessoas calorosas e cheias de fé, se emocione com o coral, sinta vontade de voltar no tempo e ver um verdadeiro astro nascendo no Apollo Theater.
Ah, e se você não for aquela pessoa respeitosa e de bom senso, mas mesmo assim resolver ir à igreja saiba que: a entrada na igreja é gratuita, mas todos aguardam vigilantemente pela sua contribuição e você não vai nunca conseguir antes do fim do culto, que dura 2 horas. Não diga que eu não avisei…
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