Maria Firmina dos Reis foi a primeira mulher a escrever um romance no Brasil! Mais do que isso, seu livro Úrsula, lançado em 1859, foi o primeiro exemplar da literatura abolicionista, um estilo que só voltou a aparecer anos depois. Ainda assim, os livros que sucederam o de Maria Firmina dos Reis, Úrsula, são desprovidos de uma de suas características pioneiras e que a transformam num marco da literatura de autoria negra brasileira. Já ficou interessado em saber quem foi Maria Firmina dos Reis e conhecer mais da sua vida e obra, né? Então fica por aqui!
Quem foi Maria Firmina dos Reis – Biografia
Se você não sabe quem foi Maria Firmina dos Reis, não se sinta só. Infelizmente ouvimos pouco mesmo sobre ela.
A biografia de Maria Firmina dos Reis começa com o livro Úrsula, que foi publicado em 1859 e não trazia seu nome na primeira edição. A autora era identificada apenas como “Uma Maranhense”. A estratégia provavelmente visava proteger Maria Firmina, já que não havia escritoras eram uma raridade, o que por si só já o tornava um feito único e, por assim ser, com consequências desconhecidas.
O primeiro romance publicado por uma mulher no Brasil também tinha um caráter claramente favorável ao abolicionismo e fazia formulações muito, mas muito à frente do seu tempo. Imagino que isso também tenha influenciado nessa decisão de não trazê-la para os holofotes na autoria de uma obra tão inovadora e revolucionária.
Nos anos seguintes seu nome aparece na autoria de Úrsula, mas a autora mantinha o tom de pedido de licença e de desculpas para trazê-lo ao mundo: “Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. (…) Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados (…)”
Poucos críticos tiveram a coragem de falar sobre o livro, sobre a autora e, principalmente, sobre sua abordagem abolicionista. Aos poucos o livro foi caindo num esquecimento que se transmutou em um apagamento total da publicação.
Somente em 1962 – 100 anos depois! – quando o historiador Horácio de Almeida achou o livro Úrsula num sebo e começou a puxar um fio deste novelo, que a vida e obra de Maria Firmina dos Reis começaram a ser recuperadas.
Vida e Obra de Maria Firmina dos Reis
Ao tentar entender quem foi Maria Firmina dos Reis, descobriu-se que ela foi a primeira professora concursada do Maranhão, vivia sozinha e se sustentava com seu próprio salário, algo bastante incomum à época, ainda mais para uma mulher filha de mãe branca e pai negro. Chame Virgínia Wolf para ver como ela estava certa sobre as mulheres precisarem de um teto todo seu!
De acordo com a sua biografia, Maria Firmina dos Reis foi uma filha ilegítima que foi enviada para morar com uma tia rica na cidade maranhense de São José de Guimarães e foi lá que estudou e começou a ter contato com familiares e amigos relacionados à cultura. Provavelmente foram estes que a incentivaram nos estudos e pensamentos modernos, apesar de distante do centro político-econômico do Império e num estado onde mais da metade da população era escrava e 86% era analfabeta.
Mesmo sendo bem diferentona para a época, o que poderia ter-lhe causado isolamento e sérios problemas, Maria Firmina escrevia para jornais, dava aulas e até chegou a criar a primeira escola mista do estado, que teve que ser fechada alguns poucos anos depois tamanho o alvoroço que causou. Interessante, né?
Não se tem notícias de que tenha casado e nem que teve filhos e a única foto sua encontrada até hoje é, na verdade, uma foto de uma autora gaúcha que não se sabe se por confusão ou propositalmente, foi relacionada à ela (a autora gaúcha, claro, era branca).
Fica evidente que contribuiu bastante para o apagamento de Maria Firmina o fato de ela não ser branca (além de mulher) e do tema da escravidão que ela traz à tona ser ultra sensível, ainda mais naquela época e lugar. Mas por sorte e justiça o resgate está vindo!
Aliás, a editora Antofágica, que tem uma proposta de reapresentar clássicos literários, fez essa edição maravilhosa de Úrsula cujas fotos você vê nesse post, comentada por Preta Ferreira, Conceição Evaristo, Fernanda Miranda e Régia Agostinho e lindas ilustrações de Heloisa Hariadne. Daquelas obras que dão muito orgulho de ter na estante e que você encontra aqui.
O livro Úrsula e a literatura abolicionista
Bom, e foi nesse contexto biográfico que, em 1859, Maria Firmina publicou “Úrsula”, um romance claramente antiescravagista e com um viés inédito, a da humanização dos escravos (10 anos antes de Castro Alves aparecer com Navio Negreiro, por exemplo) e de exaltação da África (coisa que só reaparece bem depois de Castro Alves).
Muito embora a discussão sobre a bizarrice que era a escravidão estar quente na época, lembrando que estamos falando de um período anterior à lei áurea, ninguém estava escrevendo desse modo, que ficou conhecido décadas depois como “literatura abolicionista”.
Na literatura abolicionista, não apenas a escravidão é criticada, mas os negros saem da condição de inferioridade que lhe é imposta pelos brancos para uma condição de igualdade, nobreza e beleza. Parece óbvio, mas esse conceito não é claro até hoje, imagine em 1859.
Mas veja bem, o livro não é sobre o abolicionismo. O enredo, na verdade, segue o estilo predominantes à época, que era o romantismo, e conta a história de amor meio ingênuo, puro e marcado por tragédias, de dois personagens brancos: Úrsula e Tancredo.
No entanto, Maria Firmina dos Reis traz para a história três personagens negros – Túlio, Preta Susana e Antero – que falam em primeira pessoa, relatando suas trajetórias e debatendo sua condição de escravizados. O simples fato de existirem personagens negros usando sua voz num discurso que vem de dentro pela primeira vez na nossa literatura faz com que a importância desse livro seja IMENSA!
Para se ter uma ideia, ainda hoje em 2021 há quem critique a utilização desta voz interna na literatura de autoria negra, questionando os temas desenvolvidos, o “excesso de passagens de dor e sofrimento”, “a falta de variação da temática, e por ai vai…
Além disso, as obras mais clássicas da literatura abolicionista não tem esse formato, trazendo sempre a perspectiva do (homem) branco sobre a escravidão, ainda que seja um olhar crítico.
Uma Nova Representação da África na literatura
Esses personagens negros são usados para discutir pelo olhar dos negros e escravos o que é liberdade, o que é liberdade para um escravo ou ex-escravo, quem são os “bárbaros” na história e também para colocar a África como um lugar de liberdade, felicidade, ancestralidade e até de pátria, conceito que nem existia claramente no Brasil ainda. Veja um trechinho: “E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, e essa filha tão extremamente amada, ah Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo, tudo até a própria liberdade! (…) Quando me arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus! O que se passou no fundo de minha alma, só vós o pudestes avaliar!”.
Essa visão do continente africano também difere muito das demais obras de literatura abolicionista (e não apenas) que costumam retratá-lo como um lugar de extremo sofrimento, quase amaldiçoado. Pare aqui um minutinho e pense: como você vê a África?
Para muitas pessoas, até hoje é um lugar de dor, de pobreza, de tragédias de todo tipo, numa narrativa estereotipada de inferioridade que ainda perdura e que os relatos diaspóricos lutam para sobrepor, resgatando o orgulho pelas raízes (e o fazem bastante por meio da contação de histórias e das memórias, o mesmo recurso usado em Úrsula).
Agora situe novamente a história na vida de Maria Firmina. Não havia internet, né? Nem TV, nem uma profusão de fotos e textos. De onde ela conhecia essa África que trouxe para a históra?
É evidente que Maria Firmina dos Reis PRECISAVA trazer essas questões para o mundo. Como eu disse, elas não são o enredo principal do livro Úrsula e sequer seriam necessárias para o desenvolvimento da história central, mas estão lá, já num susto depois de 7 páginas de descrições do céu, dos campos, do orvalho, das folhas… quando Túlio, um escravo negro, aparece não apenas como o salvador do mocinho mas também como EXEMPLO de comportamento humano.
Olha, tem muito mais nuances neste enredo secundário – e até no principal – que merecem a leitura e a reflexão e, de novo, sugiro a leitura da edição da Antofágica, que traz a análise maravilhosa de grandes pensadoras contemporâneas que só engrandecem ainda mais a obra.
E digo mais, se o livro parece meio simples e talvez “romântico demais”, ainda assim a gente fica preso na história, querendo saber o desfecho, torcendo.
Reconhecendo Maria Firmina dos Reis – Úrsula
Resumindo a pequena revolução de Maria Firmina: botou no mundo o primeiro romance escrito por uma mulher e negra, trazendo já de cara uma crítica claríssima à escravidão e ao racismo, dando voz aos negros para contarem sua história e para exaltarem suas raízes africanas, tudo envolto num roteiro que mesmo sendo embrulhado no romantismo, nem mesmo é óbvio!
Por tudo isso, conheçam a vida e a obra de Maria Firmina dos Reis, essa mulher totalmente exatraordinária. A literatura é sempre uma ferramenta evolutiva e um retrato de épocas e situações. Descobrir autoras como essa, que foi um sopro de mudança e sensibilidade fazem com que os livros tenham um lugar ainda mais especial na civilização.
Leiam o livro Úrsula, mas busquem também os outros textos escritos por ela como “A Escrava” e “Cantos à Beira-Mar”. Essa fantástica escritora negra merece ser conhecida e reconhecida!
Aproveite e navegue pelo site porque tem outras dicas de literatura bem legais! Veja aqui uma lista de autores contemporâneos nordestinos que encheriam Maria Firmina dos Reis de orgulho, ou veja dicas de livros sobre pandemias e nos fazem pensar em tudo em que vivemos ultimamente, entre outros achadinhos! ;)
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