Você sabe quem foi Dragão do Mar? Já ouviu falar da Greve ou Guerra dos Jangadeiros do Ceará? Pois bem. Conheci a história do Dragão do Mar há pouco tempo e fiquei estarrecida que esse líder da luta abolicionista é tão pouco conhecido. Então, segue aqui porque precisamos honrar a história desse homem!
Quem foi o Dragão do Mar?
Francisco José do Nascimento, também como Chico da Matilde, nasceu em 1839 em Canoa Quebrada, parte da cidade de Aracati, no Ceará. Mestiço e filho de pescador, viveu pro mar.
Foi catraieiro, trabalhou na construção do porto de Fortaleza, entrou para a Marinha e foi Prático da Capitania dos Portos – um tipo de guia de navegação para locais com condições específicas – até sua demissão em 1881.
Chico era um homem bastante simples, que perdeu o pai bem jovem e teve que comer muita farofa para conseguir seu lugar ao sol. Apesar das dificuldades, e provavelmente por causa delas, não se conformava com a situação dos negros e se envolveu ativamente na luta abolicionista, que foi muito precursora no Ceará, você sabia?
Em 1881 aconteceram no Ceará 4 greves dos jangadeiros no Porto de Fortaleza. Eles se recusaram a transportar negros escravizados para comercialização em outras províncias. A ideia inicial foi de um funcionário (branco) do porto chamado Pedro Artur de Vasconcelos e foi pioneira.
Ele convenceu José Luis Napoleão, um ex escravo que comprou sua própria alforria e também trabalhava no porto, a espalhar a ideia e fazer com que os demais jangadeiros aderissem à greve. Napoleão se tornou o líder das 3 primeiras greves e ainda fundou o “Clube dos Libertos”, que veio a se tornar uma importantíssima organização abolicionista.
A última das greves, que ocorreu em agosto de 1881, foi liderada por Chico, então com cerca de 40 anos, porque Napoleão se achava muito velho para a empreitada. Talvez Napoleão já tivesse percebido a proporção que a coisa estava tomando e passou o bastão para alguém com mais energia. O slogan da greve, dizem, era “No Ceará não se embarcam escravos”.
A paralisação durou 3 dias e deixou os comerciantes malucos. Apesar das ameaças e da confusão, Chico segurou firme a greve que foi tão simbólica que a notícia correu todo o Império, desencadeando várias outras ações abolicionistas tanto no Ceará quanto em outros lugares, como a greve dos catraieiros do Amazonas que aconteceu em 83, no auge do ciclo da borracha.
Chico foi demitido do Porto após a greve, mas também foi convidado à ir para o Rio de Janeiro para conhecer outros movimentos abolicionistas, recebeu o maravilhoso nome de Dragão do Mar e, junto com Napoleão, passou a atuar muito ativamente pela liberdade, ajudando em fugas, comprando alforrias, realizando manifestações e organizando o movimento.
Dragão do Mar História
Acredita-se que foi a greve dos jangadeiros que deu início à uma reação em cadeia no Ceará, com a gradativa libertação de escravos em diversos municípios.
Em 1883, a Vila de Aracape, que ficava a cerca de 32kms de Fortaleza, foi a primeira a registrar a libertação de todos os escravos. Foi até rebatizada de Redenção! E era só o começo!
No ano seguinte, em março de 1884, o Ceará foi a primeira Província a abolir a escravidão, QUATRO ANOS antes da Lei Áurea. Que orgulho, Ceará!
Claro que o Ceará teve problemas e as consequências de séculos de escravidão não desapareceram do dia para a noite, mas é importantíssimo lembrarmos do contexto disso tudo.
Estamos falando de 1881-84. Nesta época, a Lei Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico de escravos, já existia há 30 anos, assim como a Lei do Ventre Livre estava em vigor há 10 anos. Mas na prática pouca coisa tinha mudado.
Os escravos continuavam sendo trazidos clandestina e ostensivamente nos navios que cruzavam o Atlântico e continuavam sendo comercializados livremente no Brasil, inclusive as crianças, afinal a Lei do Ventre Livre era a coisa mais descabida e impossível de se operacionalizar (se os pais continuavam escravos, para onde iriam aquelas crianças?). Uma lei, literalmente, para inglês ver, já que eram eles que pressionavam pelo fim da escravidão nesse período.
Embora essa situação causasse a indignação de parte da população, os senhores mantinham o status quo com mãos de ferro e a ajuda de políticos e da polícia. Pouco ou nada de prático era feito para acabar cumprir as leis e menos ainda para acabar com a escravidão.
Assim, essa greve se caracteriza como um evento palpável, com efeitos reais que insuflaram os movimentos já existentes e assustou o Império. Aquilo era ação. Que reverberou na gradual abolição da escravatura no Ceará, gerou movimentos similares em outros lugares, mas teve também outros efeitos, mais sutis e imediatos.
A notícia correu e negros de outros estados começaram a fugir para o Ceará. Uma nova esperança brotava nas senzalas, a de que existia um lugar para onde ir tentar construir uma vida livre. Quem lê minha newsletter, a Acasos, (você pode ler e/ou se inscrever aqui) já sabe que foi por causa de um livro que narra a fuga de negros do Maranhão para ao Ceará que eu descobri quem foi o Dragão do Mar.
Aproveite para conhecer alguns dos autores nordestinos que tem contado a história de personagens como esse!
Por tudo isso a história do Dragão do Mar é imensa. Sua figura é de extrema importância histórica, pois difere dos líderes que costumam ser lembrados: todos da elite branca e intelectual, entre eles muitos jornalistas, médicos e advogados. A história marca a abolição como uma narrativa branca, mas a verdade é que foram os negros que lutaram e abriram espaço para que ocorresse.
É evidente que ao longo do tempo houve um apagamento do papel de negros que lutaram por liberdade, mas tem ocorrido um intenso trabalho de resgate desses heróis como o Dragão do Mar, Luiz Gama e tantos outros. Precisamos falar mais e mais sobre eles.
Uma pena que algumas coisas se perderam, como a jangada do Dragão do Mar que se chamava “Liberdade” e foi levada para o Rio de Janeiro – então capital do Império – dentro de um navio mercante como símbolo da luta abolicionista e da resistência popular. Foi exibida nas ruas e aplaudida por onde passou até chegar ao Museu Nacional. Em algum momento foi transferida para o Museu da Marinha, onde desapareceu sem deixar vestígios.
Mas a Liberdade não se cala e o resgate veio através de historiadores e jornalistas que seguem pesquisando e escrevendo sobre a história do Dragão do Mar, para que nunca seja esquecida.
O Dragão do Mar em Fortaleza
O professor e historiador historiador Licínio Nunes de Miranda cuja tese de doutorado é sobre o Dragão do Mar, encontrou em 2020 o túmulo deste no cemitério São João Batista, no centro de Fortaleza.
O professor vasculhou entre as mais de 15 mil lápides para encontrar o local onde Chico foi enterrado e que era desconhecido até então. Ele morreu em 1914, aos 75 anos.
A descoberta trouxe à tona novamente a história do Dragão do Mar e a importância desse líder para Fortaleza, o Ceará e o Brasil e foi amplamente divulgada no exterior, trazendo reconhecimento à este símbolo da luta contra a escravidão.
Essa divulgação é importante, pois embora o Dragão do Mar dê nome à ruas e espaços em Fortaleza, a verdade é que as pessoas nem sempre conhecem a história por traz dessas palavras. Quem sabe a lápide não se transforme num ponto de peregrinação/reverência?
Se estiver por Fortaleza, não deixe de visitar o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, um centro cultural que fica na antiga região portuária da Praia de Iracema e tem planetário, museus, teatro, arena e muitas atividades o ano todo. E veja aqui outros passeios gratuitos em Fortaleza para aproveitar muito!
Você vai respirar arte e cultura, mas agora que sabe quem foi o Dragão do Mar e conhece sua história, vai sentir uma coisinha a mais: orgulho.
Salve o Dragão do Mar!
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