A cultura angolana é riquíssima. A começar pela música, que mereceria uns 38 posts e que em 99% dos casos vai incluir muito molejo, muita batida e muitas letras muuuito bizarras.
Pelo começo. Todo mundo aqui no Brasil já ouviu falar que em Angola se dança kuduro, ainda mais com essa música ridícula que tocava na abertura da novela Avenida Brasil e que de kuduro não tem nada.
E o que é kuduro? Uma dança doidíssima, baseada no improviso e – aqui é minha particularíssima opinião – na arte de tentar movimentar cada músculo, tendão e órgão do seu corpo. Tem uma variedade infinita de movimentos, muitos deles com as pernas e nádegas, deixando a sua bunda literalmente dura, como o nome nascido das gírias diz. Aliás, em Angola e em Portugal usa-se muito a palavra rabo para designar a bunda, não de maneira negativa como para os brasileiros, mas naturalmente. Passou 3 horas sentado? Ih, ta com o rabinho quadrado! Então, quer aprender a dançar? Veja se mexe o rabinho!
Já que entrei no vocabulário, saiba que o kuduro é melhor representado pelos putos, que nada mais são do que as crianças. Acredito muito que isso se deva ao fato de que, tendo que mexer todos os pontos que você nem sabe que tem no corpo, com a idade a coisa começa a ficar meio difícil. De qualquer forma, as crianças angolanas são de uma alegria e dançam tanto que é até meio inacreditável. Eu a-do-ra-va quando ia em algum lugar e elas se juntavam para conversar, dançar, ou tirar fotos, que por sua vez elas é que adoravam. Não se engane, criança angolana anda sempre em bando. Você pode ver uma na rua e conversar um pouquinho, mas em 10 minutos eles serão uns 32! Na maior animação possível!
E eles adoram competir ou simplesmente fazer rodas em que cada um vai pro meio mostrar seus novos e mirabolantes passos. Sério, impossível repetir.
Bons representantes do legítimo kuduro? Cabo Snoop com o Windeck (assista o vídeo e tente reproduzir os negócios que ele faz com as pernas); Degala com o Do Cambua (que era uma das preferidas da criançada); Noite e dia com Kuduro Mongo (que vai sempre me lembrar da Elma); MK Kuduro com ewé ewé (para ver o que é a criançada dançando) e Titica com Olha o Boneco (uma transexual que anda superando preconceitos por lá), só para citar alguns. Os clipes são absurdamente reais! Nos lados portugueses andaram fazendo umas misturebas interessantes, sendo o Buraka Som Sistema um sucesso com Hangover (com um vídeo muuuito louco), Sound of Kuduro (com a M.I.A. tentando dançar com a molecada no clip), Kalemba, Yah! (adoro), Aqui pra vocês (com a Deize Tigrona e um bizarro toque brasileiro). Eles fizeram um show no Rock in Rio e vi pela tv que estava meio vazio, mas eles ainda não são super conhecidos por aqui. Já fui num show deles e garanto: os caras dominam o palco, muito bom.
Além do kuduro, Angola tem o semba. Isso mesmo, semba e não samba. Trocaram apenas uma letrinha, mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Curiosamente teve até enredo de escola de samba com o tema em 2012, o da Vila Isabel de Martinho da Vila. O semba não é totalmente lento, mas é meio romântico, para dançar junto e é sem dúvida o ritmo mais popular do país.
Representantes? Puto português com Zebedê e Ta sair male; Pérola com I wanna let you know my name; Yuri da Cunha com (a óoootima) Kuma Kwa Kié; Paulo Flores com os clássicos Poema de Semba (linda letra que está abaixo do vídeo) e Canta meu semba e Yola Semedo (ótima voz) com A Unica e Marido Infiel. Bom, o tema traição é muito comum na música angolana porque é frequente que os homens (as mulheres não são bem vistas se fazem o mesmo) tenham várias mulheres e filhos com várias delas.
Já que você já estará habituado com semba, pode se aventurar por águas mais profundas e conhecer a kizomba, para dançar ainda mais coladinho. A kizomba é meio que uma modificação do semba e é ainda mais sensual. Apesar de muita gente confundir, kizomba não é zouk!
Representantes? Matias Damásio com A Outra (ainda no tema traição e em defesa dos sentimentos das Outras, com a letra mais inacreditável do mundo); Lil Saint com Já não sou teu; Yola Semedo com Meu amor; Tó Semedo com Confessa, entre outros.
Em absolutamente qualquer almoço, festa de casamento, de noivado, de aniversário ou encontrinho vai rolar kuduro, semba e kizomba.
Mas em alguns lugares ainda vão além e botam a tarrachinha para tocar. É o que o nome propõem, uma dança coladíssima, atarrachado, com as pernas bem juntas, em que se dança quase parado, só movimentando os quadris, no famoso esfrega esfrega. Eu particularmente acho exageradamente explícita e lenta e, sinceramente, meio sem graça. Representantes? Robermarco com Tarraxinha nova e Yola Araújo com Apaga essa chama. Sim, as letras também costumam ser calientes…
Gastronomia, já falei, é um capítulo à parte e merece pelo menos seu interesse.
Em Angola se fala português, mas com sotaque, influências e palavras bem diferentes das nossas. Primeiro, eles estão mais chegados ao português de Portugal, mas além disso, tem sotaque e entonação próprios, uns quilos de gírias e milhares de palavras misturadas às línguas nativas, hoje meio perdidas.
Não é muito fácil encontrar professores ou mesmo falantes de mais de poucas palavras de umbundo, kimbundo, kikongo etc…, mas curiosamente o Google Angola está disponível em kikongo! É super legal e você já aprende a dizer “estou com sorte”, o que pode ser muito útil algum dia!
Não deixe de conversar, perguntar, sempre dá para aprender alguma coisa.
No quesito literatura Angola anda meio fracote. Quer dizer, podiam estar produzindo mais. Tudo bem que livro é caro, mas hoje em dia, com a internet, poderia haver mais vozes por ai. O poeta Agostinho Neto, que lutou pela independência, continua um clássico. O clássico atual é o Pepetela, que escreve desde 73 e tem obras do período de guerra, pós-guerra e lançou A Sul O Sombreiro até aqui no Brasil.
O Fernando Baião era um autor bem querido, mas suas obras são difíceis de encontrar. Super recomendado é o Kimalanga, do qual nunca vi um único exemplar! Ah, aceito empréstimo e devolvo intacto…
Outro autor angolano é o José Eduardo Agualusa, que já fez parcerias até com o Mia Couto. Ele publica vários livros, entre os quais Milagrário Pessoal, uma viagem sobre a língua portuguesa. Sou particularmente fã dele e recomendo muito o “Estação das Chuvas”, um livro que te leva à Angola onde quer que você esteja.
Um dica importante. A maioria do “artesanato angolano” vendido no mercado do Benfica ou na Baixa vem na verdade do Congo. Converse com os artesãos e faça melhores compras. Por favor, pense muito antes de engolir a história das máscaras desenterradas…
Um artista bacana, apresentado pelo meu amigo Benjamim, é o Nástio Mosquito. Apesar de ser irmão do Benji, ele tem razão quando diz que o irmão é muito bom. Acompanhe as coisas dele! Essa dupla, aliás, está metida em muita coisa (achei que quase tudo poderia ser estranho) legal de arte que acontece em Angola. Descubra mais aqui ó. Mais cedo ou mais tarde eles serão destaque por aqui…
Angola tem alguns teatros, mas não sei falar sobre isso. Fui à uma excelente apresentação no Elinga, do grupo da Kelinha e além de um bom espaço que ainda inclui exposições e da apresentação ter sido ótima, o lugar depois se transforma num bar e balada super animados. Aliás, como um bom espaço de artes, o Elinga tem a programação mais variada de Luanda e foi o único lugar onde vi gays livres, leves e soltos. E sim, me refiro à gays angolanos e não apenas estrangeiros… acredite, é raro de se ver!
Eu e alguns outros alunos tentamos, enquanto estávamos lá, fazer alguma coisa para ajudar quem precisasse e conhecer um pouco mais aquelas bandas. Pois saiba que não há muito incentivo ao voluntariado e suas ações deverão ser pessoais ou de verdadeiro missionário. Depois de muitos contatos, descobrimos na UCAN um programa de voluntariado ligado à igreja e eles permitiram que participássemos de um fim de semana de treinamento.
Fomos com eles no sábado de manhã à Escola Rural e Capacitação em Cabiri, há cerca de 1 hora de Luanda e voltamos no domingo. Fomos sem saber o que íamos fazer e lá descobrimos que é um programa de um ano (e havia estrangeiros em missão por 1 ou 2 anos participando também) em que os jovens são treinados para passarem o mês de férias em aldeias dando aulas, orientações de higiene e saúde e, enfim, ajudando o próximo. O fim de semana era o início do treinamento e na verdade ficamos lá assistindo aulinhas e com pouco contato com o pessoal da escola. Apesar de não termos feito voluntariado nenhum, no fim foi bacana, conhecemos mais alunos da UCAN, uma escola bem montada e que dá capacitação profissional , conversamos com os meninos e vimos que são bem tratados e estão em busca de uma vida digna.
O mais engraçado do fim de semana todo é que eu não ia à uma missa há sabe-se lá quanto tempo, com certeza uns 10 anos e tivemos que levantar às 6 (???!!!!) da matina para ver a missa no povoado ali perto. Como não bastasse esse sacrilégio de me acordarem tão cedo por uma missa, durou 2 horas!!!!! Mas foi uma experiência sensacional, a missa foi linda, fomos todos caminhando juntos pela estrada, assistimos um coro especial pela presença do voluntariado e eu, perdida na caminhada, acabei sentada com o missionário no meio da população local, enquanto todo o resto do nosso grupo sentava do outro lado, mais ajeitadinho. Já não bastasse a população me achando um peixe fora dágua e uma menininha ficar a missa toda tentando encostar em mim para ver se eu era gente mesmo, não sabia o que fazer durante a missa e fiquei perdida na hora do abraço nos vizinhos e passei a maior vergonha. Mas meus olhos enchem de lágrimas só de lembrar!
O resto é viver. Andar pelo país, perceber as sutilezas e a etiqueta dos relacionamentos, conhecer as aldeias, ir à uma missa para vê-los rezando e cantando em línguas nativas e com roupas especialíssimas, descobrir que as mulheres são em maioria esmagadora responsáveis por sustentar as famílias, entender que os panos com que as mães carregam os bebês são super simples de usar, seguros e os bebês que andam nele aprendem mais facilmente a andar, se indignar com a ainda presente indiferença com relação ao lixo e ao meio ambiente, xingar no trânsito, passar uma ou muitas noites no escuro…