Alexandra David Neel foi uma das primeiras mulheres viajantes independentes de que se tem notícia. Ela saiu numa odisseia pelo budismo tibetano ou lamaísmo, como ela chama, e passou por vários países lá pelos anos 1910-1930. Que coragem, né? Fruto dos aprendizados e observações de suas andanças, o livro “Tibete Magia e Mistério” é uma viagem por si só.
Desde que uma amiga me falou um pouco sobre ela senti um interesse genuíno em saber mais sobre essa tal de Alexandra David Neel, que se atreveu a desbravar o Tibet e sua vizinhança chinesa, butanesa e indiana para se tornar ela própria uma Lama. E a cada descoberta sobre ela, mais necessidade sentia de conhecer seus escritos.
Foi meio difícil encontrar os livros dela, mas valeu a pena! Vem ver.
Tibete Magia e Mistério – Um pouco da visão ocidental e da realidade
Fascínio é o mínimo que se sente ao ler este livro. Pelas descobertas feitas por Alexandra, que detalho um pouco mais abaixo, mas também porque é impressionante o tanto que ela percorreu sozinha, em tempos sem internet, só com base nas ligações que ela foi construindo ao longo do seu caminho e movida pela curiosidade.
Já me trouxe certa proximidade a forma como o livro trata a visão do budismo e do lamaismo que a é comum ao mundo ocidental, em contraponto ao interesse verdadeiro de Alexandra por conhecer de fato o budismo tibetano.
No nosso mundo existem vários conceitos, que vou chamar aqui de estereótipos, sobre os monges budistas. Por exemplo: que eles são todos extremamente religiosos, vegetarianos e capazes de incessantes horas de meditação. Depois de muito viajar por países predominantemente budistas, aprendi que nem sempre a realidade é essa.
Muitas pessoas se tornam monges por pressões da família, por falta de outras oportunidades, para estudar, entre outros motivos. Nem todos são tão espiritualizados, alguns se mantém no ofício simplesmente por se encaixarem na rotina da vida monasterial, fazendo trabalhos braçais e não exatamente estudando os textos sagrados, além de nem todos serem vegetarianos e em muitos países, como o Camboja e o Laos, ser comum passar um ano experimentando a vida como monge para depois voltar à vida normal (e se tornar um partidão por isso).
Para mim, observar essas peculiaridades enquanto viajava pela Ásia foi surpreendente (já que eu me baseava em pré-conceitos bem limitados pelas informações que tinha antes de experimentar de perto a realidade) e até hoje quando conto uma viagem de 12hs de ônibus ao lado de um monge com um enorme frango assado com o espeto e tudo na sua bolsa, a maioria das pessoas fica chocada.
Essas minhas impressões em outros países do sudeste asiático se confirmam com relação aos monges tibetanos, que muitas vezes estão imersos em pequenos prazeres do seu próprio contexto, que se percebe também no relato de Alexandra David Neel neste livro, como se vê neste trecho:
“Toda manhã, rapazes ainda sonolentos, juntamente com os seus superiores, banham-se nessa curiosa atmosfera que é um misto de misticismo, preocupações gastronômicas e a expectativa de um donativo. Esse início do dia em um gompa (mosteiro) nos dá a ideia do caráter de toda vida monástica lamaísta onde encontramos, sempre presente, a mesma curiosa associação de elementos: sutil filosofia, comercialismo, elevada espiritualidade e a ávida busca de prazeres grosseiros.”
Ela ainda trata em Tibete Magia e Mistério dos charlatões (na vertente mais esotérica), das crendices populares e traz várias nuances de como a cultura influencia na visão e na formação do budismo tibetano.
Fica claro como isso tudo está consideravelmente fora do nosso entendimento, pois são aspectos muito diversos da nossa realidade e que passaram séculos guardados lá no Tibet, sendo até hoje muito difícil a aproximação e compreensão desse contexto.
Aproveite e veja aqui Como ir para o Tibet – Passo a Passo.
Sincretismo religioso no Tibet
Outra coisa que me chamou a atenção foi que a autora ressalta em diversas passagens o sincretismo entre o budismo tibetano e o Bon, uma religião ancestral do Tibet e que enaltece a natureza, com características bem xamânicas que remete aos povos da América, do Japão e do Egito veja nesse trecho:
“A população chamada de budista, na prática é xamanista e conta com um grande número de médiuns que transmitem as mensagens dos deuses, demônios e mortos.”
É interessante como as religiões antigas do mundo todo tem traços similares apesar das populações viverem tão afastadas e, no caso do Tibet, isoladas de todas as outras!
Na edição de Tibet Magia e Mistério que li, da Ed. Hemus, há ainda uma nota dos tradutores/editores ressaltando como, sob muitos aspectos, os rituais e regras gerais dessa religião se parecem com a nossa umbanda.
Fique com essa ideia ao ler o livro e você vai ver que incrível esse tricô do mundo!
Vai brotando ao longo da leitura uma consciência de que no fim as religiões continuam todas meio parecidas, em parte baseadas em dogmas profundamente filosóficos e em parte em crenças populares diversas.
Nossa mente é levada à Cristo no deserto, às sessões espíritas, aos rituais da morte egípcia ou outros de matriz africana e assim por diante, com dezenas de conexões espirituais daquelas recônditas terras tibetanas com o mundo todo!
Leia aqui sobre Religião no Japão – Xintoismo e Budismo e veja as semelhanças!
Trilhando o caminho percorrido pela Madame Tibet
Tibet Magia e Mistério não é, porém, um livro de fácil leitura, tampouco uma jornada de viagem, apenas para alertá-los.
É realmente um livro mais “didático” com descrições e impressões sobre os mistérios do budismo tibetano. Embora Alexandra conte passagens da sua vida e viagens, o foco é o dia a dia, as tradições, a magia da terra das neves. Trilhamos parte de seu caminho na busca pelo “método”, pelo conhecimento profundo do lamaismo:
“Aquele que sabe como tratar o assunto, pode viver confortavelmente até mesmo no inferno. Ditado popular tibetano. Enquanto outras linhas budistas acreditam que o destino de um morto é fixado matematicamente de acordo com seu caráter, com a sua moral, os lamaístas acreditam que aquele que conhecer o “método” apropriado, é capaz de modificar para melhor sua vida post-mortem. Em outras palavras, poderá provocar o próprio renascimento nas condições mais agradáveis possíveis.
Partindo do princípio de que o “método”, o “savoir-faire”, é de importância essencial, os lamaístas pensam que, depois de ter aprendido a arte de bem viver, deve-se aprender a arte de morrer bem e de “bem agir” em outros mundos.
De acordo com os tibetanos, o iniciado místico é capaz de conservar a sua mente lúcida durante a desintegração de sua personalidade, passando deste mundo para o outro com inteira consciência do que está acontecendo.”
Vamos compreendendo, junto com Alexandra, que o budismo tibetano está longe de ser algo unificado. Ao contrário, é uma busca totalmente solitária, individual e mental sobre o que é verdade para cada um entre as muitas filosofias e caminhos existentes:
“Todos gozam da liberdade de acreditar na doutrina que mais lhe parecer verdadeira e um monge pode até mesmo ser um descrente convicto – tal particularidade somente a ele concerne e a ninguém mais.”
Por trazer tantos aspectos da cultura tibetana que são difíceis em alguns momentos de serem compreendidos por nós, achei o livro interessantíssimo e recomendo a leitura para quem se interessa pelo Tibet e pelo budismo tibetano, para quem pretende ir para o Tibet e também para quem já foi, como eu, pois me trouxe um conhecimento bem mais profundo do que vivi por lá.
Neste trecho sobre as observações diárias nos mosteiros, assim como em outras passagens sobre como a paisagem e a localização dos estudiosos do budismo interferem na compreensão do mistério e do método, me vi de novo diante daqueles lindos mosteiros pendurados nas montanhas do Tibet e do Butão. Lugares onde qualquer um tem vontade de meditar (juro!):
“No idioma tibetano um mosteiro é chamado de “gompa”, que significa “uma casa na solidão”. Orgulhosamente isolados nos picos batidos pelos ventos, entre paisagens desoladas, os gompas tibetanos parecem vagamente agressivos, como se lançassem um desafio a invisíveis adversários procedentes dos quatro pontos do horizonte. Quando encastelados nas altas cadeias de montanhas, com frequência assumem a inquietante aparência de laboratórios onde forças ocultas são manipuladas.”
Não tem descrição mais perfeita!
O livro traz também o detalhamento de diferentes conceitos do budismo tibetano, sendo muito informativo para compreensão das nomenclaturas e de certos comportamentos tibetanos e um prato cheio para entender uma viagem por lá.
Saiba mais sobre o Butão aqui.
Rituais, Treinamentos, Sobrenatural – a Magia e o Mistério do Tibet
Voltando ao tema com o qual comecei o post, com relação ao budismo tibetano, a imagem ocidental é, dos tempos de Alexandra David Neel à atualidade, a perfeita imagem do título do livro: magia e mistério.
Do uso de símbolos budistas por Hitler para evocar forças ocultas, passando por cenas de monges levitando, se teletransportando, meditando durante anos sem acordar culminando nos túneis intermundanos citados por Neil Gaiman, já vimos todo tipo de representação sobre as magias do Tibet por aí.
Tudo me parecia meio irreal, lendário ou pelo menos alegórico. Nunca levei muuuito a sério.
E eis que Alexandra vem citar e Tibete Magia e Mistério os mais diversos rituais que se transmutam em poderes sobrenaturais como o auto aquecimento do corpo, o transe que permite uma viagem à pé de dias e dias sem paradas para qualquer descanso ou sono, a criação de figuras extracorpóreas, telepatia e até a própria levitação. Veja esse trecho em que ela descreve um treinamento de alguns monges:
“Senta-se com as pernas cruzadas, à maneira oriental, sobre uma grande e grossa almofada. Aspira vagarosamente e por muito tempo, como se desejasse encher o corpo de ar. Em seguida, suspendendo a respiração, salta para cima mantendo as pernas cruzadas e sem usar as mãos, caindo de novo sobre a mesma almofada na mesma posição. Repete este exercício grande número de vezes, durante cada período de treinamento. Como facilmente se pode inferir, o objetivo desse exercícios não são saltos acrobáticos. De acordo com os tibetanos, os corpos dos que se adestram durante anos por esse método tornam-se excepcionalmente leves, quase sem peso. A finalidade é, portanto, a levitação.”
De repente tudo aquilo que parecia lenda começa a tomar uma forma no mundo físico, afinal, alguém totalmente de fora do Tibet presenciou, estudou e relatou as coisas mais estranhas possíveis.
Esse trecho acima é apenas um dos exemplos práticos que a autora traz, dos mais impensáveis ritos e superstições, treinamentos e estudos!
Se quiser saber sobre outros livros que já comentei, clique aqui. Dá para viajar bastante!
Achei curioso, por exemplo, que ao pesquisar mais sobre Alexandra David Neel, vi muitas matérias ressaltando como ela criou um monge imaginário (uma figura extracorpórea) que era até mesmo visto por outras pessoas e se rebelou contra ela, a obrigando a se esforçar durante 6 meses para que desaparecesse por completo. Parece insano, né?
Mas essa nem é a parte mais sobrenatural do livro, pode acreditar! Não sei bem porque as pessoas ficaram com esse fetiche nesse trecho. Acho que por ser essa uma experiência totalmente realizada por ela e não apenas observada.
Mas fato é que depois do capítulo IV Tibet Magia e Mistério vai mostrando um intrincado retrato da cultura budista/lamaísta esotérica, detalhando diversos rituais que vão de curiosos a muito sinistros num piscar de olhos. Embates contra demônios – reais e imaginários – possessões, morte, fadas. Tem de tudo e mais um pouco.
As alegorias são histórias intrincadas sobre a busca da verdade, do nirvana, sobre, uma vez mais, agir com sabedoria, na vida e na morte.
Alexandra relata, por exemplo, que um estudioso decidiu matar um ofensor por um processo oculto durante o qual uma “dakini”, um tipo de fada, aparece e pergunta se ele pretendia mandar o espírito para um lugar melhor ou trazê-lo de volta ao corpo depois do ritual, ao que ele responde que não sabia. A dakini o reprova veementemente e explica que “ninguém tem o direito de destruir o que não poderá reconstruir em seguida ou não possa estabelecer em melhores condições”.
Me peguei pensando em várias ocasiões se a minha viagem ao Tibet não teria sido muito mais rica se eu tivesse lido esse livro antes. Talvez. Provavelmente. Ou talvez simplesmente não estivesse preparada para explorar o Tibet com tudo isso em mente.
Para mim foi maravilhoso viajar novamente por aquelas terras através da narrativa tão detalhada das loucas experiências que Alexandra viveu no País das Neves, como ela sempre chama com todo carinho.
Muitas coisas que vi por lá, como pequenos símbolos, rituais, mandalas e até alguns nomes e histórias que memorizei, mas sem conseguir ligá-las de fato à algo concreto, passaram a fazer sentido e isso foi quase como estar lá novamente.
Ler a descrição da inauguração do Tashilumpo, um dos mosteiros que visitei em Shigatse, me trouxe enorme emoção! Coonhecer a lenda da benção do local – muito sobrenatural, diga-se – que Alexandra descreve me fez me sentir de novo diante do enorme Buda Maitreya que descansa lá.
Lembrei da aura meio sobrenatural que o lugar tinha, com monges surgindo e desaparecendo em silêncio dos cantos do enorme Tashilumpo e de como atribuí essa sensação ao estrito controle chinês sobre as atividades dentro dos mosteiros, isolando os poucos monges que ainda vivem lá do contato com o mundo exterior e esvaziando aqueles lindos templos.
Mas e se não fosse só isso? E se forças muito além da minha compreensão também pudessem estar por ali? Ra-paz!
Leia também este post sobre uma visita à um xamã em Cusco!
E não apenas viajei pelo Tibet de novo, mas pelo Butão também, onde as lendas e rituais são revelados de forma mais aberta (considerando a situação de controle da China sobre o Tibet) e que casam perfeitamente com as impressões da autora sobre o lamaísmo.
Fui me sentindo a cada página mais pronta para algo que já vinha sentindo que devia fazer: voltar. Dessa vez, com outro enfoque, com outra visão. Já contei nesse post sobre o Tibet que não foi fácil visitá-lo pouco depois de conhecer MacLeod Ganj, onde vive o Dalai Lama, ter contato com exilados e com a versão deles da história.
Iria novamente com a mente mais limpa, sem diminuir a violenta colonização do Tibet pela China, mas ainda mais determinada a aprender sua cultura genuína.
Vamos?
Quem foi Alexandra David Neel?
Termino o texto com um pouquinho mais da vida dessa maravilhosa pessoa.
Alexandra era francesa, nascida em 1868. Recebeu uma educação profundamente católica, mas sua curiosidade foi aguçada pelo pai, um professor bem progressista, republicano e anarquista, o que a fez estudar muito filosofia desde cedo, incluindo ai tudo o que descobriu sobre a Ásia.
Foi feminista, estudante de sânscrito e tibetano, cantora. Viajou muito, por diferentes países, com a ajuda providencial de uma herança e também com sua habilidade de se engendrar nos mais diferentes meios.
Se casou e se separou nos anos 1900, embarcando para uma viagem pela Índia que deveria durar pouco mais de 1 ano, mas acabou 14 anos depois, passando pela China, Nepal, Butão e incluindo muitos anos no Tibet, 3 deles apenas na viagem à Lhasa, então proibida à estrangeiros com seu filho adotivo. Durante todo esse tempo, manteve uma estreita amizade com o ex marido, que acompanhava com excitação as descobertas do seu caminho. Saiba um pouco mais sobre ela aqui.
Conheceu o Dalai Lama, se tornou ela própria uma Lama reconhecida, capaz de aquecer o próprio corpo, materializar um monge gordinho e proteger um punhal mágico!
Escreveu vários outros livros, como Viagem à Lhasa e Iniciações Tibetanas, além de ter traduzidos diversos livros sagrados tibetanos.
Morreu aos 101 anos e deixou esse legado incrível!
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